A Gramática no Texto: Cidadezinha qualquer de Carlos Drummond de Andrade
O conceito de gramática no texto vigente nas escolas hoje é
diferente daquilo que a linguística textual toma por objeto. Essa
expressão geralmente é sinônima de ensino contextualizado
de gramática, compreendendo-se contexto como um texto em que se verificam
determinados usos da língua.
Nesses casos, infelizmente, o texto raramente é
tomado como unidade de sentido e, mais raramente ainda, como discurso. Relegado ao papel de suporte, o texto quase sempre acaba se transformando em mero pretexto
para a exemplificação teórica ou para exercícios de reconhecimento
ou classificação gramatical.
Nesse tipo de prática metalinguística, dificilmente
se consideram a leitura e a interpretação efetiva do texto como atividades
necessárias aos estudos gramaticais. Em outros termos, na organização
dos trabalhos da disciplina Língua Portuguesa, existe a hora da leitura
e da interpretação textual e existe a hora do estudo da gramática, que
se faz contextualizado, em textos, embora estes não sejam tomados como
unidades de sentido ou como objetos de ensino.
Tomemos um exemplo, este conhecido poema de Carlos
Drummond de Andrade:
Cidadezinha qualquer
Casas
entre bananeiras
mulheres
entre laranjeiras
pomar
amor cantar.
Um homem
vai devagar.
Um cachorro
vai devagar.
Um burro
vai devagar.
Devagar...
as janelas olham.
Eta vida
besta, meu Deus.
(Reunião. 10. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1980. p. 17.)
A concepção que tem tomado o texto como pretexto
para a abordagem da língua certamente se contentaria em aproveitar o
poema para fazer um levantamento dos artigos empregados (quatro ocorrências)
e classificá-los à luz da tradição gramatical (três ocorrências do
artigo indefinido um e uma ocorrência
do definido as). A chamada contextualização,
nesse caso, é compreendida apenas como o suporte contextual em que os
artigos foram empregados, sem que se estabeleça qualquer tipo de relação
entre as indicações de sentido feitas pelos artigos e o sentido geral
do texto.
Na verdade, esse tipo de abordagem gramatical
não passa de uma roupagem diferente de uma velha prática escolar, conhecida
como gramática da frase. Se antes se analisavam os termos dentro dos
limites da frase, hoje não é diferente quando a frase ainda é o limite dos
termos, uma vez que não se consegue estabelecer nexos semânticos entre
os termos, a frase e o texto como um todo.
Provavelmente, quando Carlos Drummond de Andrade
escreveu “Cidadezinha qualquer”, não estava preocupado com o emprego de
artigos e muito menos com a classificação destes; talvez nem tivesse
percebido que fizera uso dessa classe gramatical. Contudo, algo certamente
lhe interessava muito: a construção do sentido ou dos sentidos do
texto. E, para obter os sentidos pretendidos, valeu-se dos recursos de
que dispõe a língua, entre os quais o emprego ou a ausência de artigos.
O certo é que o poema não teria os sentidos que tem
não fosse o emprego dos artigos da forma como foram utilizados. Se, por
exemplo, em lugar de “Um homem vai devagar”, tivéssemos “O homem vai devagar”,
o sentido do poema seria completamente modificado.
Aos estudos de língua interessam justamente
esses aspectos. Em vez de mero reconhecimento de categorias ou de classificações,
tomado até então como um fim em si, importa mais observar como certas escolhas
linguísticas, feitas dentro do leque de coerções da língua e do estilo
pessoal, participam da construção do sentido dos textos.
Evidentemente, nem todo texto serve para qualquer
fim. A presença reiterada ou mesmo a ausência de determinados recursos
linguísticos devem ser os critérios básicos de escolha de textos para
tratar desses mesmos recursos.
Os textos podem ser lidos de muitas formas e por
diferentes prismas. Pode-se adentrar um texto por seus aspectos formais,
tais como tipo de verso e rimas, pelo léxico, por sua camada fônica, pela
pontuação, pela sintaxe, por recorrências de diferentes naturezas,
pelos paralelismos, pelas imagens, pelos motivos ou pelo tema, pela situação
de produção, etc. Quando nos propomos a estudar gramática no texto,
supõe-se que pretendemos ler o texto pela perspectiva da língua, isto é,
dos recursos linguísticos utilizados pelo autor para criar sentido
naquele texto e naquela situação de produção.
Como exemplo, passemos a ler “Cidadezinha qualquer”
do ponto de vista do emprego dos artigos.
Na primeira estrofe do poema não há ocorrência de
artigos; na segunda estrofe, há três ocorrências do artigo indefinido um; na última estrofe, apenas a ocorrência
do artigo definido as.
A ausência de artigos na primeira estrofe do
poema resulta numa generalização dos substantivos empregados: casas,
bananeiras, mulheres, laranjeiras, pomar, amor e cantar (substantivado).
É como se, num movimento rápido de uma câmera cinematográfica, se
apreendesse uma visão global e dinâmica de uma “cidadezinha qualquer”
do interior, mineira ou de qualquer outro Estado do país, onde elementos
humanos se fundem à paisagem natural. Nessa visão panorâmica, não há
espaço para artigos e adjetivos; é a coisa concreta que aflora na paisagem.
A falta de pontuação, principalmente no último
verso, acentua o dinamismo da cena (e não do objeto), como que compondo
um painel constituído por flashes de uma pequena e pacata cidade de
interior. A paisagem naturalizada, somada ao aspecto humano, que com
ela se funde, confere ao poema algo de eterno, de mítico e estático.
Na segunda estrofe, os três versos que a compõem
apresentam a mesma estrutura sintática e quase que a mesma escolha lexical.
Com variações apenas nos substantivos — homem, cachorro e burro —, nos
três casos é sempre o indefinido um
o determinante desses substantivos.
Vê-se, agora, um movimento diferente da câmera,
que seleciona alguns dos elementos da paisagem e focaliza-os. Não há
ainda individualização desses elementos, mas eles introduzem movimento
na cena imóvel. São apenas um homem, um cachorro e um burro quaisquer, como
tantos outros que circulam pelas cidades interioranas. Nada sabemos
sobre eles, nenhum atributo (adjetivo ou expressão adjetiva) modifica
sua essência. São seres comuns, indefinidos, anônimos. O que ressalta
em seus gestos é apenas o lento movimento de ir. A estrutura paralelística
desses versos, seja na organização sintática, seja na escolha lexical,
reitera a ideia de lentidão de movimentos, de ações cotidianamente
repetidas. Nada de novo ocorre na paisagem.
A terceira estrofe inicia-se por um novo emprego
da palavra devagar, agora em posição inicial do verso. Embora haja reiteração
da ideia da morosidade das coisas, a inversão do advérbio, seguida das
reticências, é suficiente para indicar uma quebra em relação à sequência
anterior e prenunciar o desfecho do poema.
Pode-se dizer que a câmera chegou ao seu movimento
final. Como que se valendo do recurso zoom,
o foco foi aos poucos se fechando, partindo de uma visão panorâmica da
paisagem para repousar agora no particular, nas janelas, único substantivo
do poema acompanhado de artigo definido.
Em contraposição à imprecisão de homem, cachorro e burro (elementos diluídos na paisagem),
conferida pelo emprego do artigo indefinido um, o emprego do artigo definido as confere precisão e reconhecimento às janelas.
Não são quaisquer janelas; são aquelas conhecidas janelas das pequenas
cidades do interior, sobre as quais as pessoas se debruçam a fim de olhar a
vida exterior, à procura de novidades, de mexericos, de acontecimentos
que quebrem a rotina. É como se, no espaço indefinido de uma cidadezinha
qualquer do interior do país, houvesse sempre algo conhecido e próximo
da experiência de cada um de seus habitantes: as janelas — único meio de
contato com o mundo exterior.
Convém lembrar que o poema
“Cidadezinha qualquer” foi publicado pela primeira vez na obra Alguma poesia, em 1930, quando ainda
não se dispunha do rádio e da TV como meios de comunicação. As pequenas
cidades do interior ficavam praticamente isoladas das grandes capitais.
A opção pelo artigo definido evidentemente não
é casual, mas uma condição, nesse contexto, para contrapor o particular
ao geral, o conhecido e próximo ao difuso e distante. A personificação
de janelas (“as janelas olham”) resume, no poema, aquilo que talvez seja a
experiência mais concreta de quem vive ou viveu nesse tipo de cidade.
Olhando para os artigos ou para a falta de artigos
do texto, evidenciam-se também os movimentos do olhar do sujeito, que,
indo do geral para o cada vez mais particular, se situa em algum ponto dessa
cidadezinha qualquer, talvez também de uma janela aberta. Contudo, não
se trata de um olhar à procura de novidades e, sim, de um olhar distanciado,
embora “integrado” ou, pelo menos, situado dentro da paisagem. A percepção
do mundo é mediada pela consciência crítica que impede a adesão pura e
simples aos hábitos da pequena cidade.
Esse olhar reservado, em parte crítico, em parte
irônico, lembra o olhar torto, gauche, do “Poema de sete faces”6, atenuado
nesse caso pelo tom humorístico do verso final: “Eta vida besta, meu Deus!”.
O “Poema de sete faces” também foi
publicado em Alguma poesia (1930)
A observação dos recursos linguísticos utilizados
no poema ainda pode levar a outros aspectos importantes relacionados com
o sentido geral do texto e com a situação de produção. Embora fuja aos
interesses imediatos deste texto, vale ao menos citar alguns aspectos linguísticos
do poema, também responsáveis pela construção de sentido, como a seleção
de um vocabulário simples e marca de oralidade no último verso.
Se se leva em conta a situação de produção desse
poema, notamos que essas “escolhas” também significam: são marcas do compromisso
do poeta com o projeto modernista dos anos 1920, do qual Drummond fazia
parte e era um de seus principais porta-vozes em Minas Gerais.
Com esse exemplo, procurou-se mostrar o que poderia
ser o chamado ensino de gramática no texto na escola. Nessa perspectiva
de abordagem da língua e do texto, interessam menos as questões que envolvem
problemas conceituais (por exemplo, as diferenças entre artigos e pronomes)
ou problemas de terminologia (artigos, determinantes). Tomando as terminologias
como meio, e não como fim, ao professor e ao estudante interessam mais a
observação e a análise dos recursos que estão à disposição do usuário
da língua, bem como das coerções que esses recursos implicam, como meio de
apropriá-los em suas práticas discursivas, seja na condição de enunciador,
seja na de enunciatário.
Os estudos de língua na escola vivem, hoje, um
longo período de transição. Talvez, neste momento, o mais importante seja
estar aberto a outras dimensões da língua, como o texto e o discurso, sem
que, para isso, seja necessário pôr abaixo tudo o que a tradição gramatical
construiu.
Pode-se lembrar aqui a lição de Franchi, Negrão e
Müller, ao sugerirem formas de abordagem semântica na análise de
estruturas sintáticas da língua:
Não precisamos,
logo de início, abandonar tudo o que aprendemos a respeito da gramática.
No trabalho de avaliação da chamada “gramática tradicional” alguns
dados parecerão resultantes de uma excelente intuição sobre o sistema
da língua e a estrutura sintática de muitas expressões. Outras terão de
ser corrigidas, estendidas ou melhor delimitadas.
Ensino de Língua Portuguesa: entre a tradição e a enunciação
Texto apresentado por um dos autores
desta coleção no VI Fórum de Estudos Linguísticos, na UERJ, em setembro de
2000, e publicado em Língua e transdisciplinaridade:
rumos, conexões, sentidos, organizado por Claudio Cezar Henriques e Maria
Teresa Gonçalves Pereira. (São Paulo: Contexto, 2002.)
Faz aproximadamente três décadas que a linguística
chegou às universidades brasileiras e se integrou aos estudos de linguagem.
Isso quer dizer que a absoluta maioria dos professores de Língua
Portuguesa que estão ativos na vida profissional teve um contato mínimo
que seja com essa área do conhecimento científico.
Entretanto, se fizermos uma retrospectiva e examinarmos
o que de concreto mudou nas aulas de Língua Portuguesa das escolas de todo o
país durante esse período, veremos que o saldo é muito pequeno. Sem alterações
profundas na seleção dos conteúdos ou no modo de ensinar língua materna,
talvez a principal mudança se restrinja à inclusão de meia dúzia de
novos conceitos, oriundos da linguística e/ou da teoria da comunicação,
que passaram a integrar os programas escolares, principalmente os do
ensino médio, como signo, significante, significado, emissor, receptor,
funções da linguagem, polissemia, etc.
Não é difícil compreender as razões desse fenômeno.
Ao concluir o curso de Letras, o recém-formado professor de Língua Portuguesa
ingressa no mercado de trabalho e passa a integrar uma estrutura de
ensino — seja na rede pública, seja na rede particular — fortemente fincada
na tradição, o que significa, no tocante ao ensino de língua, especificamente,
uma adesão às práticas cristalizadas de ensino de gramática.
Tanto as teorias já consagradas da linguística
quanto as mais recentes pesquisas no campo da linguagem com que o professor
teve contato na universidade pouco contribuem para a sua prática escolar,
posto que ele se sente intimidado ou até mesmo despreparado para, sozinho,
afrontar uma tradição milenar de ensino de língua e suportar as pressões
sociais de pais, diretores de escolas, concursos vestibulares, etc.
De fato, a transposição de teorias científicas
para o universo escolar não pode ser mecânica nem direta. Como consequência,
dada a efemeridade e a luta das correntes científicas e ideológicas
que atuam na Academia, a escola naturalmente opta pelo que está consagrado
pela tradição. E, no que se refere ao ensino de língua, o consagrado é
a gramática normativa (em seus aspectos descritivos e prescritivos),
cujas raízes remontam à Antiguidade greco-latina. Como mudar uma tradição
milenar de ensino de língua?
Ao longo das três últimas décadas de estudos linguísticos,
muitos foram os modelos teóricos que se sucederam, entre eles os da linguística
estrutural, do gerativismo, da pragmática, da linguística textual,
da análise da conversação e da análise do discurso.
Entre os linguistas mais destacados, as posições
quanto ao ensino de língua na escola variam de um extremo a outro. Alguns
propõem pura e simplesmente o fim do ensino de gramática e sua substituição
por estudos de linguagem — embora nunca tenha ficado clara o suficiente
a diferença entre esses dois objetos de ensino nem como seria um programa
escolar de estudos de linguagem (sem gramática).
Outros linguistas, sem desprezar por completo a
gramática normativa e sem pretender oferecer um modelo teórico acabado
que substitua o primeiro, questionam o rigor dos conceitos da gramática
normativa, ou a forma como esta vem sendo ensinada, e, tomando como
base um ou outro tópico gramatical, formulam propostas ou exemplos de
um ensino de português renovado, geralmente com vistas na dimensão
semântica e/ou discursiva da língua.
É nessa direção de estudos linguísticos aplicados
ao ensino de Língua Portuguesa que se situa a Gramática e interação — Uma proposta para o ensino de gramática
no 1º e no 2º graus, de Luiz Carlos Travaglia, obra que representa um passo
importante na discussão sobre os rumos do ensino dessa disciplina.
Partindo de uma distinção entre gramática prescritiva e gramática descritiva
— as duas gramáticas que chamamos genericamente de normativas
—, o linguista não só admite o estudo dessas duas gramáticas no âmbito
escolar (com revisão, evidentemente, da ênfase dada a cada uma delas),
mas também reclama da quase ausência de outras duas, a gramática
de uso e a gramática reflexiva, que não têm tido espaço
na sala de aula.
Para Travaglia, um estudo de língua que inclua a
gramática descritiva deve tomar as categorias gramaticais não como
um fim em si, mas como meio, como suporte básico para reflexões metalinguísticas
de maior alcance. Há vários exemplos em sua obra de como fazer isso.
Outro trabalho que ruma na mesma direção é o ensaio
“O uso de relações semânticas na análise gramatical”, de Carlos
Franchi, Esmeralda V. Negrão e Ana L. Müller, que discute as variações sintático-semânticas
que envolvem o predicativo.
Em todas essas iniciativas, apesar das diferenças
teóricas que marcam uma e outra corrente, o que se verifica de comum
entre elas é o interesse em renovar o ensino de Língua Portuguesa, modificando,
diversificando e ampliando o ponto de vista sobre o objeto, a língua.
Assim, não faltam demonstrações bem-sucedidas de como trabalhar verbos,
adjetivos ou processos de formação de palavras pela perspectiva semântica,
do texto ou do discurso.
Os professores de português, em grande parte, ao
terem contato com essas propostas, reconhecem a pertinência delas e se
sentem dispostos a alterar sua prática. O problema é que, se reunidas,
essas propostas não chegam a constituir um programa de ensino de Língua
Portuguesa, nem uma sequência didática, até porque esse não é o propósito
dos pesquisadores que as formulam.
Como consequência, quando a escola conta com professores
atualizados e dispostos à mudança, o que se verifica em sua prática
pedagógica é um tratamento diferenciado de alguns tópicos gramaticais
— que passam então a ser tratados pelo ponto de vista da semântica, da
pragmática, da linguística textual ou da análise do discurso —,
enquanto os demais tópicos, pelo fato de ainda não terem sido objeto de
investigação, acabam sendo tratados de modo tradicional.
Em meio a avanços e recuos, a proposta tomada
como bandeira pela maioria das escolas — e que ganhou a adesão da maior
parte dos professores de Língua Portuguesa — é a de um trabalho contextualizado
com a gramática, conhecida como gramática no texto.
A Gramática
no Texto
A publicação dos Parâmetros
curriculares nacionais, em 1997, reforçou uma tendência que já se
verificava no ensino de Língua Portuguesa: a de um ensino contextualizado
de gramática, centrado no texto.
Contudo, enquanto para os PCNs o texto devia ser tomado
como o objeto básico de ensino e como unidade de sentido, em muitas
escolas o que se notava, e ainda se nota hoje, é o uso do texto como mero pretexto
para o tradicional ensino da gramática da frase. Ou seja, se antes frases
descontextualizadas serviam de objeto para a teoria e para os exercícios
de análise gramatical, hoje, equivocadamente, apresentam-se textos,
dos quais são retirados fragmentos para uma abordagem linguística que
não vai além do horizonte da frase. O texto, como unidade de sentido ou
como discurso, é completamente esquecido.
Perde-se, assim, a oportunidade de fazer um trabalho
de reflexão gramatical integrado à leitura, que considere o texto
como unidade de sentido. Em outras palavras, um trabalho de leitura
que examine de que modo a língua é utilizada em todas as suas dimensões
(fonética, morfossintática, semântica, estilística) para a construção
do sentido ou dos sentidos do texto.
Nossa posição sobre gramática no
texto está desenvolvida em “Gramática: interação, texto e reflexão”,
publicado em Língua portuguesa:
uma visão em mosaico, organizado por Neusa Barbosa Bastos (São Paulo:
IP-PUC/Educ, 2002).
Se feito dessa forma, o trabalho com a língua aproximaria
os estudos de linguagem de textos reais que circulam socialmente — literários
e não literários — e instrumentalizaria melhor o estudante para suas
práticas discursivas, seja na condição de enunciador, seja na de enunciatário.
Esse trabalho, entretanto, pode ser ainda mais amplo se for dada a ele uma
dimensão enunciativa.
A perspectiva
enunciativa
Durante muitos anos, a linguística desenvolveu
seus estudos tomando como referência a clássica dicotomia entre língua
e fala, estabelecida por
Saussure. Vendo a fala como efêmera e individual, Saussure colocou-a em
segundo plano para deter-se nos estudos da língua, vista como um sistema
estável de signos e regras. Os estudos de enunciados, portanto, interessavam
mais como exemplos dos mecanismos existentes na língua, sejam os de funcionamento,
sejam os de construção de sentido.
Estudos recentes no campo da linguagem, contudo,
demonstram que a construção de sentido dos enunciados não se faz apenas
a partir da significação isolada de cada um de seus componentes. Os elementos extravertais da situação de produção,
ou seja, da enunciação, também contam
com um papel decisivo na construção do sentido dos enunciados.
Por essa perspectiva, pode-se dizer que cada enunciado
é uma realização concreta, única e histórica. Segundo Mikhail Bakhtin,
“se perdermos de vista os elementos da situação, estaremos tão pouco
aptos a compreender a enunciação como se perdêssemos suas palavras mais
importantes”.
Vejamos uma possibilidade de abordagem enunciativa
a partir de um anúncio de roupa infantil.
Anúncio
“Se eu pudesse escolher, eu só usava LUlica Baby.”
“Fui no
shopping com a Dindinha. Ela me levou em tudo que é loja.
Todo
mundo falava: — que gracinha... que bonitinha...
Só que
não tinha nada gostoso, tudo me apertava, me enforcava...”
“Se eu
pudesse escolher, só usava Lulica Baby.”
Lulica
Baby, a roupinha que o seu bebê vai gostar de vestir.
Para
crianças de 0 a
4 anos.
Central
de Atendimento ao Consumidor Tel.: (011) 266-3566
O anúncio é oportuno para ilustrar como dois modelos
diferentes de análise da língua — a perspectiva normativa, da gramática
tradicional, e a perspectiva enunciativa — abordariam o mesmo objeto.
Para a gramática normativa, que opera com noções
de certo e errado, o anúncio seria
um bom objeto de trabalho, pois forneceria situações interessantes
para demonstrar erros gramaticais
e promover sua correção.
É o caso, por exemplo, do enunciado de destaque
no anúncio (“Se eu pudesse escolher, eu só usava Lulica Baby”), em que não
se verifica a correlação de tempos verbais mais indicada pela norma padrão,
segundo a qual o imperfeito do subjuntivo (pudesse) obrigaria o
emprego do futuro do pretérito do indicativo: usaria, em lugar de usava.
Além disso, na parte inferior do anúncio, em letras
miúdas, há um texto que também propiciaria várias situações interessantes
para a abordagem normativa, cujas observações passariam certamente
pela regência dos verbos ir e levar, pelo emprego de ter em lugar de haver e pelas inúmeras marcas de oralidade, seja nas repetições
de tudo ou do tempo verbal (o imperfeito
do indicativo), seja na escolha lexical (gostoso, em vez de agradável, por exemplo) ou no emprego dos
diminutivos (gracinha,
bonitinha).
Se, entretanto, tomarmos esse texto pela perspectiva
enunciativa, e sob um ponto de vista que admita a existência e a pertinência
de outras variedades linguísticas, além da norma padrão, a análise
levaria a outras direções.
Primeiramente, é importante observar que o texto
não é constituído apenas por linguagem verbal. A imagem de um bebê saudável,
com menos de um ano e vestido com roupas da marca anunciada, apoia e reforça
a ideia do conforto e bem-estar reclamados pela criança, que a parte verbal
do texto procura transmitir.
O que vemos no enunciado da parte de baixo do anúncio
é uma pequena narrativa, no limite estabelecido pelas aspas, que conta
a visita de um bebê ao shopping, acompanhado pela “Dindinha”,
forma de tratamento informal e carinhoso de madrinha. Em 1ª pessoa,
é o próprio bebê quem narra suas peripécias (“ela me levou em tudo que é
loja”), abrindo espaço, em discurso direto, para as vozes de outras pessoas
(“que gracinha... que bonitinha...”), ao mesmo tempo que tece críticas ao
passeio (“só que não tinha nada gostoso”), pelo fato de não estar adequadamente
vestido (“tudo me apertava, me enforcava”).
Fora das aspas, emerge outra voz, agora a de um adulto,
que explicitamente oferece o produto anunciado ao leitor, reforçando
mais uma vez a ideia principal do anúncio: o conforto das roupas anunciadas
(“a roupinha que o seu bebê vai gostar de vestir”).
Do ponto de vista linguístico, o que caberia perguntar
de imediato é: por que o anunciante escolheu, para a fala do bebê, uma
variedade linguística informal, com marcas de afetividade e oralidade,
se o veículo em que o anúncio foi publicado (revista Claudia, 1998) é escrito e a variedade linguística escolhida
por esse veículo é a padrão?
Nesse momento, convém examinar outros aspectos
da situação de produção: a quem se dirige o anúncio? O público dessa
revista, como todos sabem, é predominantemente feminino, em grande
parte formado por mulheres casadas e com filhos ou mulheres com sobrinhos,
de nível sociocultural médio — portanto, um público que apresenta um
perfil ideal para comprar o produto anunciado.
O anunciante, coerentemente, lança mão de estratégias
de persuasão, verbais e não verbais, compatíveis com o perfil de seus
interlocutores. Afinal, que mulher, tendo vivido ou não a experiência
da maternidade, não se deixaria levar pela figura dócil de um bebezinho
e pela narrativa de peripécias feita por ele próprio?
É evidente que um bebê com menos de um ano de vida jamais
poderia produzir o texto delimitado pelas aspas, que supostamente é
seu, mesmo com todas as marcas de oralidade e informalidade apresentadas.
No entanto, o anunciante estabelece com o leitor um jogo discursivo
em que tal fato passa a ser possível, e a escolha da variedade linguística
cumpre o papel de atribuir certo grau de verossimilhança à suposta fala
do bebê.
Com algumas variações, esse jogo discursivo é
semelhante ao que ocorre nas situações em que um adulto infantiliza sua
linguagem, assumindo a voz da criança que ainda não é dotada de linguagem
verbal e falando por ela com outras pessoas, que por sua vez também podem
responder, fazendo uso ou não do mesmo recurso (trocando letras, suprimindo
sílabas, etc.).
Assim, junto com a imagem do bebê, a variedade linguística
informal cumpre nesse texto a função de estratégia
persuasiva para vender o produto. Entrando no jogo discursivo, as
leitoras do anúncio são tomadas inicialmente pela afetividade, o que
prepara e “amortece” o objetivo verdadeiro do anúncio, a venda de uma
roupa infantil, explicitado pela voz do adulto: “Lulica Baby, a roupinha
que o seu bebê vai gostar de vestir. Para crianças de 0 a 4 anos”.
Levando em conta todos esses aspectos que fazem parte
da enunciação, isto é, da situação concreta em que o enunciado foi produzido,
podemos notar o quão estreita seria uma abordagem normativa do anúncio,
que se contentasse em apenas identificar e corrigir os “erros” gramaticais.
E mais, fica muito claro nesse texto o quanto é impróprio
o conceito de “erro gramatical” e como a abordagem se enriquece quando
incluímos o conceito de adequação.
No anúncio, as variações em relação à modalidade escrita e formal não
constituem erro; pelo contrário, elas são adequadíssimas à situação, isto é, cumprem plenamente
os objetivos do enunciador de sensibilizar seu interlocutor para a
compra de um produto de consumo.
Em contrapartida, inadequado seria organizar
o discurso infantil de acordo com a norma padrão, pois o texto perderia
em verossimilhança e, consequentemente, em força argumentativa,
frustrando as intenções do anunciante.
O texto ainda poderia servir para alguns estudos
específicos de linguagem, como a questão do aspecto verbal, a apreciação
discursiva, as variedades linguísticas, o jogo de vozes na constituição
do discurso, entre outros.
Se os estudos de linguagem a partir de textos
representam um avanço significativo em relação à gramática normativa,
a abordagem enunciativa representa um passo a mais, uma vez que, além de
examinar as escolhas linguísticas responsáveis pela construção de
sentido, examina também os elementos externos ao texto, ou seja, os elementos
da situação de produção que, como vimos no caso do anúncio, interagem com
os elementos internos e participam da construção do sentido global
do texto.
Hoje, vivemos um momento de transição no ensino
de Língua Portuguesa na escola. Os PCNs, que explicitamente defendem um
enfoque enunciativo do ensino de língua, contribuíram largamente
para fomentar a discussão pedagógica e estimular um espírito de renovação.
As diferentes correntes da linguística e da análise
do discurso podem prestar contribuições significativas ao ensino de
língua na escola, desde que haja abertura e disposição de ambas as partes
— universidade e escola — para efetivar mudanças concretas.
Neste momento de transição, não é necessário abandonar
tudo o que professores e alunos historicamente vêm aprendendo de gramática14.
As terminologias tradicionalmente apresentadas pela gramática
normativa, por exemplo, podem até ser aproveitadas (evidentemente,
não sem críticas ou revisão), mas sempre como meio, e nunca como fim.
Fazemos nossas as palavras de Franchi,
Negrão e Müller, que afirmam: “Não precisamos, logo de início, abandonar
tudo o que aprendemos a respeito da gramática. No trabalho de avaliação
da chamada ‘gramática tradicional’ alguns dados parecerão resultantes
de uma excelente intuição sobre o sistema da língua e a estrutura sintática
de muitas expressões. Outras terão de ser corrigidas, estendidas ou melhor
delimitadas”.
O melhor caminho para a mudança do ensino de
Língua Portuguesa na escola talvez seja o já escolhido por alguns estudiosos
da linguagem que, em lugar da crítica radical e distanciada da realidade
escolar, optaram por um diálogo com professores e alunos, partindo de
seus conhecimentos linguísticos teóricos e empíricos para saltos
maiores.
Referências Bibliográficas
Bakhtin, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979.
Franchi, Carlos, Negrão, Esmeralda V., Müller,
Ana L. O uso de relações semânticas na análise gramatical. Linha d’Água, nº 14.
Ilari, Rodolfo. A linguística e o ensino de língua portuguesa. 4. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1992.
__________.
Introdução à semântica. São Paulo:
Contexto, 2001.
Neves, Maria Helena de Moura. Gramática na escola. 2. ed. São Paulo:
Contexto, 1991.
__________.
Que gramática estudar na escola?.
São Paulo: Contexto, 2003.
Perini, Mário. Gramática descritiva do português. 2. ed. São Paulo: Ática,
1996.
Travaglia, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta
para o ensino de gramática no 1º e no 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996.
__________.
Ensino plural. São Paulo: Cortez,
2003.
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