Os Gêneros Escolares: Das práticas de Linguagem aos Objetos de Ensino
Bernard Schneuwly
Joaquim Dolz
O
conceito de “práticas sociais de referência”, proposto por Martinand (1986, p.
137ss.), tornou-se moeda corrente no debate didático, inclusive naquele sobre a
didática do francês como língua materna. Desenvolveremos a ideia de que é o
gênero que é utilizado como meio de articulação entre as práticas sociais e os
objetos escolares — mais particularmente, no domínio do ensino da produção de
textos orais e escritos. Esta idéia é discutida em três etapas: a noção de
gênero é situada em relação à de prática de linguagem e de atividade de
linguagem; seu funcionamento no quadro escolar é examinado; um caminho é
esboçado para melhor conhecer e precisar este funcionamento. As reflexões
propostas levam a novas questões que necessitam um programa de pesquisa cuja urgência
parece grande.
Práticas,
gêneros e atividades de linguagem
Se
o desenvolvimento é considerado um processo de apropriação das experiências
acumuladas pela sociedade no curso de sua história, as duas noções de prática
social e de atividade e, consequentemente, as de práticas e atividades de
linguagem, são fundamentais: a primeira fornece um ponto de vista contextual e
social das experiências humanas (e do funcionamento da linguagem); a segunda
adota um ponto de vista psicológico para dar conta dos mecanismos de construção
interna destas experiências (particularmente, as capacidades necessárias para
produzir e compreender a linguagem). A apropriação diz respeito tanto a uma
quanto à outra, na medida em que a aprendizagem que conduz à interiorização das
significações de uma prática social implica levar em conta as características
desta prática e as aptidões e capacidades iniciais do aprendiz. Olhemos mais de
perto essas duas noções.
Práticas
de linguagem
No
que concerne às práticas de linguagem, o conceito visa, é claro, às dimensões
particulares do funcionamento da linguagem em relação às práticas sociais em
geral, tendo a linguagem uma função de mediação em relação às últimas. No
contexto da reflexão sobre a relação dos aprendizes com as práticas de linguagem,
em geral, com aquelas que ocorrem nas escolas, em particular, Bautier (1995)
forneceu, recentemente, esclarecimentos interessantes para este conceito. As
práticas de linguagem implicam dimensões, por vezes, sociais, cognitivas e linguísticas
do funcionamento da linguagem numa situação de comunicação particular. Para
analisá-las, as interpretações feitas pelos agentes da situação são essenciais.
Estas interpretações dependem da identidade social dos atores e das
representações que eles têm dos usos possíveis da linguagem e das funções que
eles privilegiam de acordo com sua trajetória. Neste sentido, as práticas
sociais “são o lugar de manifestações do individual e do social na linguagem”
(p. 203). Seu caráter é, consequentemente, heterogêneo e os papéis, ritos,
normas e códigos que são próprios à circulação discursiva, dinâmicos e
variáveis. A relação dos atores com as práticas de linguagem também varia e a
distância que pode separá-los ou, ao contrário, aproximá-los tem efeitos
importantes nos processos de apropriação. Estudar o funcionamento da linguagem
como práticas sociais significa, então, analisar as diferenciações e variações,
em função de sistemas de categorizações sociais à disposição dos sujeitos
observados.
Atividades
de linguagem
Seguindo
Leontiev (1984), a atividade pode ser considerada uma estrutura do
comportamento, orientada por um motivo contido nas condições sociais que o
fazem nascer. Dentre as diferentes atividades humanas, a atividade de linguagem
funciona como uma interface entre o sujeito e o meio e responde a um motivo
geral de representação-comunicação.
Ela
sempre tem sua origem nas situações de comunicação, desenvolve-se em zonas de
cooperação social determinadas e atribui, sobretudo, às práticas sociais um
papel determinante na explicação de seu funcionamento. Segundo Bronckart
(1996), as atividades podem ser decompostas em ações, ou estruturas de
comportamento não diretamente articuladas aos motivos, mas orientadas por
objetivos intermediários que advêm da vontade consciente e que implicam uma
representação de seu efeito no âmbito da cooperação e da interação sociais. É o
julgamento social que delimita as ações. Neste sentido, a atividade pode ser
definida como um sistema de ações. De maneira mais concreta (Dolz, Pasquier e Bronckart,
1993), uma ação de linguagem consiste em produzir, compreender, interpretar
e/ou memorizar um conjunto organizado de enunciados orais ou escritos (um
texto, no sentido geral que nós damos a este termo enquanto unidade linguística).
Levando em conta as diferenças das formas oral e escrita, entre produção,
compreensão ou memorização, podem ser distinguidas diversas modalidades
instrumentais de realização das ações de linguagem. Toda ação de linguagem
implica, por outro lado, diversas capacidades da parte do sujeito: adaptar-se
às características do contexto e do referente (capacidades de ação), mobilizar
modelos discursivos (capacidades discursivas) e dominar as operações psicolinguísticas
e as unidades linguísticas (capacidades linguístico-discursivas).
Gêneros
de linguagem
O
problema é saber como se articulam as práticas de linguagem, nas suas
diferentes formas, com a atividade do aprendiz. Partimos da hipótese de que é
através dos gêneros que as práticas de linguagem encarnam-se nas atividades dos
aprendizes. Por seu caráter intermediário e integrador, as representações de
caráter genérico das produções orais e escritas constituem uma referência
fundamental para sua construção. Os gêneros constituem um ponto de comparação
que situa as práticas de linguagem.
Eles
abrem uma porta de entrada para estas últimas que evita uma imagem delas
dissociada no momento da apropriação.
Os
gêneros podem ser considerados, seguindo Bakhtin (1984), instrumentos que
fundam a possibilidade de comunicação. Trata-se de formas relativamente
estáveis tomadas pelos enunciados em situações habituais, entidades culturais
intermediárias que permitem estabilizar os elementos formais e rituais das
práticas de linguagem. Os locutores sempre reconhecem um evento comunicativo,
uma prática de linguagem, como instância de um gênero. Este funciona, então,
como um modelo comum, como uma representação integrante que determina um
horizonte de expectativa (Jauss, 1970) para os membros de uma comunidade
confrontados às mesmas práticas de linguagem (Canvat, 1996). A prova da
existência deste modelo nas diferentes práticas de linguagem é, precisamente, o
fato de que o gênero é imediatamente reconhecido, como uma evidência, pela
maneira como se impõe, para aquele que se sente à vontade na prática em
questão, como uma forma evidente que seu enunciado deve tomar — salvo, bem
entendido, se ele quiser, calculando conscientemente os efeitos possíveis,
suprimir as marcas do gênero, o que será encarado como desvio, tanto por ele
próprio quanto pelos outros atores da prática visada.
Para
definir um gênero como suporte de uma atividade de linguagem três dimensões
parecem essenciais:
1) os conteúdos e
os conhecimentos que se tornam dizíveis através dele;
2) os elementos
das estruturas comunicativas e semióticas partilhadas pelos textos reconhecidos
como pertencentes ao gênero;
3) as
configurações específicas de unidades de linguagem, traços, principalmente, da
posição enunciativa do enunciador e dos conjuntos particulares de sequências
textuais e de tipos discursivos que formam sua estrutura. O gênero, assim
definido, atravessa a heterogeneidade das práticas de linguagem e faz emergir
toda uma série de regularidades no uso. São as dimensões partilhadas pelos
textos pertencentes ao gênero que lhe conferem uma estabilidade de facto, o que
não exclui evoluções, por vezes, importantes.
A
aprendizagem da linguagem se situa, precisamente, no espaço situado entre as
práticas e as atividades de linguagem. Nesse lugar, produzem-se as
transformações sucessivas da atividade do aprendiz, que conduzem à construção
das práticas de linguagem. Os gêneros textuais, por seu caráter genérico, são
um termo de referência intermediário para a aprendizagem. Do ponto de vista do
uso e da aprendizagem, o gênero pode, assim, ser considerado um mega-instrumento
que fornece um suporte para a atividade nas situações de comunicação e uma
referência para os aprendizes. Mas qual é o lugar efetivo dos gêneros na
escola?
Os
gêneros na escola
Na
sua missão de ensinar os alunos a escrever, a ler e a falar, a escola,
forçosamente, sempre trabalhou com os gêneros, pois toda forma de comunicação,
portanto também aquela centrada na aprendizagem, cristaliza-se em formas de
linguagem específicas. A particularidade da situação escolar reside no seguinte
fato que torna a realidade bastante complexa: há um desdobramento que se opera,
em que o gênero não é mais instrumento de comunicação somente, mas, ao mesmo
tempo, objeto de ensino/aprendizagem. O aluno encontra-se, necessariamente, num
espaço do como se, em que o gênero funda uma prática de linguagem que é,
necessariamente, em parte, fictícia, uma vez que ela é instaurada com fins de
aprendizagem. Podem-se distinguir, ao menos, três maneiras de abordar o ensino
da escrita e da palavra , todas tendo em comum o fato de colocarem de forma
central o problema do gênero como objeto e as relações complexas que o ligam às
práticas de referência . Nós os descrevemos como formas puras, “tipos ideais”.
Na realidade, elas não aparecem jamais como tal, mas apresentam-se sempre em
formas mistas com certas tendências predominantes.
Desaparecimento
da comunicação
No
desdobramento mencionado, é produzida uma inversão em que a comunicação
desaparece quase totalmente em prol da objetivação e o gênero torna-se uma pura
forma linguística cujo objetivo é seu domínio. Em razão desta inversão, o gênero,
instrumento de comunicação, transforma-se em forma de expressão do pensamento,
da experiência ou da percepção. O fato de o gênero continuar a ser uma forma
particular de comunicação entre alunos e professores não é, absolutamente,
tematizado; os gêneros tratados são, então, desprovidos de qualquer relação com
uma situação de comunicação autêntica. Nessa tradição, os gêneros escolares são
pontos de referência centrais para a construção, através dos planos de estudo e
dos manuais, da progressão escolar, particularmente no âmbito da
redação/composição. Sequências relativamente, estereotipadas balizam o avanço
através das séries escolares, sendo a mais conhecida e canônica, que pode,
entretanto, sofrer variações importantes, a “descrição — narração — dissertação”,
gêneros aos quais se vêm juntar, em certas épocas históricas, a resenha, o
resumo e o diálogo.
A
origem histórica complexa destes gêneros escolares guias, tanto literária
quanto retórica, não nos interessa aqui. Suas características intrínsecas, ao
contrário, são fundamentais. Nós os resumiremos como segue. Trata-se de
autênticos produtos culturais da escola elaborados como instrumentos para
desenvolver e avaliar progressivamente e sistematicamente as capacidades de
escrita dos alunos. Eles constituem, então, as formas tomadas pelas concepções
do desenvolvimento e da escrita. Muito esquematicamente, pode-se dizer que a
escrita, a produção de textos escritos, é concebida como representação do real,
tal qual ele o é, ou do pensamento, da forma como é produzido. Isto significa,
do ponto de vista do desenvolvimento, que os gêneros devem se ordenar segundo
uma sequência que vai daqueles que descrevem as realidades mais simples
(descrição de objetos ou de eventos simples) àquelas mais complexas, mais particularmente,
o pensamento. Os gêneros, sendo concebidos como formas de representação de
diferentes realidades, têm uma forma que não depende de práticas sociais, mas
da realidade mesma. Eles não são, então, formas, historicamente variáveis, de
resolução de problemas comunicativos complexos que implicam uma referência a
realidades em função de situações comunicativas mutáveis, mas modelos de
representação do real particularmente valorizados. Os textos “clássicos”
pertencentes a esses gêneros funcionam, consequentemente, como modelos
concretos para o ensino, que definem a norma do “bom francês”. Mesmo que
originários da tradição literária e retórica, não se faz tanto a definição e a
descrição dos gêneros escolares em relação a gêneros historicamente situados que
correspondem a práticas de linguagem, mas em relação a necessidades
consideradas como sendo aquelas dos objetos descritos: lógica do objeto ou do
pensamento. Os gêneros são naturalizados.
A
escola como lugar de comunicação
A
escola é tomada como autêntico lugar de comunicação e as situações escolares
como ocasiões de produção/recepção de textos. Os alunos encontram-se, assim, em
múltiplas situações em que a escrita se torna possível, em que ela é mesmo
necessária. Mais ainda: o funcionamento da escola pode ser transformado de tal
maneira que as ocasiões de produção de textos se multiplicam: na classe, entre
alunos; entre classes de uma mesma escola; entre escolas. Isto produz,
forçosamente, gêneros novos, uma forma toda nova de comunicação que produz as
formas linguísticas que a possibilitam. Freinet é, sem dúvida, quem foi mais
longe nesta via que encara com seriedade a escola como autêntico lugar de
produção e utilização de textos. Pensar-se-á aqui, particularmente, no texto
livre, na conferência, na correspondência escolar, no jornal de classe, nos
romances coletivos, nos poemas individuais.
Trata-se,
também nesta concepção, de gêneros escolares, que são, porém, resultado do
funcionamento mesmo da comunicação escolar e cuja especificidade é o resultado
desse funcionamento. Na prática em classe, os gêneros não são referidos a
outros, exteriores à escola, que poderiam ser considerados modelos ou fontes de
inspiração. A situação de comunicação é vista como geradora quase automática do
gênero, que não é descrito, nem ensinado, mas aprendido pela prática de
linguagem escolar, através dos parâmetros próprios à situação e das interações
com os outros. A naturalização é aqui de uma outra ordem: o gênero nasce
naturalmente da situação. Ele não é, assim, tratado como tal, não é descrito,
nem, menos ainda, prescrito, nem tematizado como forma particular que toma um
texto. O gênero não aparece como tal no processo de aprendizagem; ele não é um
instrumento para o escritor que reinventa cada vez a forma linguística que lhe
permite a comunicação. Aprende-se a escrever escrevendo, numa progressão que é,
ela também, concebida como natural, constituindo-se segundo uma lógica que
depende tão-somente do processo interno de desenvolvimento.
Negação
da escola como lugar específico de comunicação
Neste
terceiro tipo, é como se os gêneros que funcionam nas práticas de linguagem
pudessem entrar como tais na escola, como se houvesse continuidade absoluta
entre o que é externo e interno à escola. Os gêneros entram sem estorvo no espaço
escolar. Trata-se, de fato, de uma negação da escola como lugar particular de
comunicação. As exigências de diversificar a escrita, de criar situações
autênticas de comunicação, de ter boas razões para falar/escrever, de se
referir aos textos autênticos são o slogan desta abordagem. Os procedimentos
pedagógicos, estes podem ser diferentes: privilegiar, de preferência, uma via
funcional que respeita as delimitações próprias à situação e as possibilidades
de descobertas, mais ou menos espontâneas, ou insistir na necessidade de
instrumentação, um procedimento não excluindo, porém, o outro.
A
representação do gênero na escola pode, então, ser descrita como segue:
trata-se de levar o aluno ao domínio do gênero, exatamente como este funciona
(realmente) nas práticas de linguagem de referência. Assim, estas últimas
constituem, senão uma norma a atingir de imediato, ao menos um ideal que
permanece como um alvo. Decorre daí que textos autênticos do gênero considerado
entram tais e quais na escola. Uma vez dentro desta, trata-se de (re-)criar
situações que devem reproduzir as das práticas de linguagem de referência, com
uma preocupação de diversificação claramente marcada. O que é visado é o
domínio, o mais perfeito possível, do gênero correspondente à prática de linguagem
para que, assim instrumentado, o aluno possa responder às exigências
comunicativas com as quais ele é confrontado. Não há, neste tipo de abordagem,
possibilidade de pensar a progressão, pois é a necessidade de dominar situações
dadas que está no centro da concepção. Poder-se-ia dizer que esta abordagem
tende à dissolução da escola como lugar partícula de ensino/aprendizagem nas
práticas sociais que ela reproduz, o ensino visando, quase imediatamente, ao
domínio de instrumentos necessários para funcionar nestas práticas.
Não
se trata de negar nenhum dos ganhos trazidos por estes “tipos ideais”, mas de
definir as contribuições possíveis de cada um, cujos pontos fortes e fracos
podem ser determinados como segue no Quadro 1.
Em
direção a uma revisão dos gêneros escolares
Parece-nos
possível proceder a uma reavaliação das diferentes abordagens discutidas
através de uma tomada de consciência do papel central dos gêneros como objeto e
instrumento de trabalho para o desenvolvimento da linguagem. Por um lado, isto
implica um trabalho lento, longo, complexo de avaliação do que é adquirido e,
por outro lado, o desenvolvimento de novas pistas de trabalho.
Quadro 1
Pontos Fortes
1.Necessidade de
criações de objetos escolares para um ensino/aprendizagem eficaz;
Pensamento em
progressão.
2.Leva muito em
conta a particularidade das situações escolares e utilização destas;
Importância do
sentido da escrita;
Tônica na
autonomia dos processos de aprendizagem nestas situações.
3. Evidencia as
contribuições das práticas de referência;
Importância do
sentido da escrita;
Insistência na
dimensão comunicativa e na variedade das situações.
Pontos Fracos
1. Progressão como
processo linear, do simples para o complexo, definido através do objeto
descrito;
Abordagem
puramente representacional, não comunicativa.
2.Não leva em
conta explicitamente e não utiliza modelos externos; Não modelização das formas
de linguagem e, portanto, ausência de ensino.
3. Negação da
particularidade das situações escolares como lugares de comunicação que
transformam as práticas de referência;
Ausência de
reflexão sobre a progressão e o desenvolvimento.
Neste trabalho, é
importante levar-se em conta o seguinte:
a) Toda introdução
de um gênero na escola é o resultado de uma decisão didática que visa a
objetivos precisos de aprendizagem que são sempre de dois tipos: trata-se de
aprender a dominar o gênero, primeiramente, para melhor conhecê-lo ou
apreciá-lo, para melhor saber compreendê-lo, para melhor produzi-lo na escola
ou fora dela e, em segundo lugar, para desenvolver capacidades que ultrapassam
o gênero e que são transferíveis para outros gêneros próximos ou distantes.
Isso implica uma transformação, pelo menos parcial, do gênero para que estes
objetivos sejam atingidos e atingíveis com o máximo de eficácia: simplificação
do gênero, ênfase em certas dimensões etc.
b) Pelo fato de
que o gênero funciona num outro lugar social, diferente daquele em que foi
originado, ele sofre, forçosamente, uma transformação.
Ele
não tem mais o mesmo sentido; ele é, principalmente, sempre — nós acabamos de
dizê-lo — gênero a aprender, embora permaneça gênero para comunicar. É o
desdobramento, do qual falamos mais acima, que constitui o fator de
complexificação principal dos gêneros na escola e de sua relação particular com
as práticas de linguagem. Trata-se de colocar os alunos, ao mesmo tempo, em
situações de comunicação que estejam o quanto mais próximas de verdadeiras
situações de comunicação, que tenham um sentido para eles a fim de melhor
dominá-las como realmente o são, sabendo, o tempo todo, que os objetivos
visados são (também!) outros.
Para
compreender bem a relação entre os objetos de linguagem trabalhados na escola e
os que funcionam como referência é preciso, então, de nosso ponto de vista,
partir do fato de que o gênero trabalhado na escola é sempre uma variação do
gênero de referência, construída numa dinâmica de ensino/aprendizagem, para
funcionar numa instituição cujo objetivo primeiro é, precisamente, este.
Como
descrever esta variação? Parece-nos que, atualmente, a via empregada em
didática para abordar este problema pode ser descrita pelo que nós propomos
chamar de elaboração de modelos didáticos de gêneros. Num modelo didático,
trata-se de explicitar o conhecimento implícito do gênero, referindo- se ao
conhecimento formulado, tanto no domínio da pesquisa científica, quanto pelos
profissionais especialistas. Diante da multiplicidade de conhecimentos de
referência em jogo na elaboração de modelos, pode-se teorizar um processo
didático que compreende três momentos em forte interação e em perpétuo
movimento, que nós descreveremos como a aplicação de três princípios ao
trabalho didático:
Ø Princípio
de legitimidade (referência aos conhecimentos que emanam da cultura ou
elaborados por profissionais especialistas);
Ø Princípio
de pertinência (referência às capacidades dos alunos, às finalidades e
objetivos da escola, aos processos de ensino/aprendizagem);
Ø Princípio
de solidarizarão (tornar coerentes os conhecimentos em função dos objetivos
visados).
A
forma fortemente interativa do movimento, em função dos três princípios, é
primordial: a aplicação de nenhum deles é independente dos outros e é,
precisamente, a imbricação profunda dos três tipos que constitui uma das
dimensões da constituição do objeto escolar, definido por sua modelização
didática. Um modelo didático apresenta, então, em resumo, duas grandes
características:
1) Ele constitui
uma síntese com objetivo prático, destinada a orientar as intervenções dos
professores;
2) Ele evidencia
as dimensões ensináveis a partir das quais diversas sequências didáticas podem
ser concebidas.
Evidentemente,
no interior de cada uma dessas dimensões, uma progressão é possível, podendo
esta ir de uma simples sensibilização em recepção a um aprofundamento maior em
produção.
Dissemos
que toda introdução do gênero na escola faz dele, necessariamente, um gênero
escolar, uma variação do gênero de origem. O que muda são os tipos e graus de
variação. Vamos ilustrar algumas que nos parecem, particularmente,
significativas, apresentando os modelos didáticos, bastante resumidos, da
maneira como foram elaborados para planificar o ensino, a saber, elaborar sequências,
pensar progressão, conceber possibilidades de diferenciação.
O
debate: lugar de manipulação ou instrumento coletivo de reflexão
A
escola atual favorece a criação de conselhos de classe nos quais os alunos se
agrupam para debater de maneira democrática a respeito da vida da classe ou da
escola. O conselho de classe é um momento particular em que a palavra é usada
para resolver conflitos, para analisar e melhorar o funcionamento da classe e
para tomar decisões coletivamente. Trata-se de um lugar de argumentação a
partir de verdadeiros desafios para os alunos. Muitos professores queixam-se,
entretanto, da dificuldade que grande parte dos alunos tem em participar, em
tomar a palavra em público, em discutir problemas com os outros, em corroborar
ou refutar um ponto de vista. Por outro lado, sempre que as situações se tornam
importantes, parece difícil tomar distância, cortar a dinâmica das trocas e
organizar um ensino sobre os mecanismos do debate.
É
possível, nesse momento, questionar se as situações autênticas de argumentação,
que são, sem dúvida, lugares essenciais de aprendizagem, são, realmente,
aquelas em que se pode fazer, de maneira otimizada, a observação, a análise e o
exercício de capacidades necessárias à argumentação e ao debate.
É
possível, além disso, perguntar se o debate não é, igualmente, um gênero que
pode ser praticado com outros fins, além dos da regulação da vida escolar.
Mas,
então, que debate trabalhar em classe?
O
debate é um gênero imediatamente reconhecível por todos. Nas suas formas mais
caricaturais — que são, ao mesmo tempo, talvez suas formas prototípicas, de
tanto os modelos televisivos dominarem as representações — ele funciona como
eventos que colocam, numa luta sem piedade, oponentes que tentam, por todos os
meios, particularmente pela persuasão, pela teatralização, pelo
sensacionalismo, pela verbalização de insultos e, até, de “semi-verdades” ou
ainda, pela contradição, dominar, quiçá ridicularizar, o adversário. A escuta
deste último, por sua vez, é direcionada a encontrar falhas que lhe permitem
desarmar seu predecessor. O objetivo da empreitada é, mais do que encontrar uma
resposta para uma questão, fazer triunfar, a qualquer preço, uma posição em
detrimento da outra.
A
paralisação, a incapacidade de aprender, a falta de respeito pelo outro
constituem, tendencialmente, o todo desses eventos da mídia que, em parte, têm
interesse, precisamente, nessa dimensão belicosa. O que se poderia aprender
desse gênero, assim praticado, e que domina dessa maneira as representações
comuns? Não se ensinaria através dele uma visão da argumentação como combate em
que a questão da verdade tenderia a desaparecer? Em que a possibilidade de
aprender e de se enriquecer com o outro é negada? Em que os sutis mecanismos
que movimentam cada um, em função da transformação das significações de sua
própria fala graças à integração da fala dos outros, quase não são
perceptíveis?
Em
que domina a visão da argumentação como pura técnica retórica?
Se
é bom que os alunos conheçam os mecanismos destas variações do debate para lhe
serem vítimas o menos possível, parece pouco interessante delas fazer um objeto
de aprendizagem/ensino, tanto para desenvolver suas capacidades e
representações da argumentação, quanto como instrumento para refletirem
coletivamente sobre problemas sociais que podem se apresentar diante deles. A
modelização didática do gênero deve ser orientada para variações menos
“belicosas” e construir um gênero escolar que insista em dimensões potenciais,
mas que se manifestam pouco nos protótipos mais reconhecidos.
Numa
outra ocasião, descrevemos em detalhe um tal modelo. Os aspectos seguintes
parecem-nos essenciais (De Pietro, Erard e Kaneman, 1996). O objeto de um
debate é sempre uma questão social controversa para a qual soluções diversas
são previstas.
O
debate pode, então, ser concebido, idealmente, como um instrumento de
construção coletiva de uma solução (Klein, 1980). Tendo posições diferentes em
relação à questão colocada, porém não necessariamente contraditórias, cada
participante do debate pressupõe nos outros, participantes ou ouvintes, a
faculdade da razão e a vontade de encontrar através do raciocínio uma solução
coletivamente aceitável para a questão. Isto significa que cada um está pronto
para colocar em jogo sua posição que, nesse momento, evolui, forçosamente, na
discussão. O debate propriamente dito é constituído pelo conjunto das
intervenções que, cada uma delas, fornece esclarecimento à questão controversa.
O
debate aparece, assim, como a construção conjunta de uma resposta complexa à
questão, como instrumento de reflexão que permite a cada debatedor (e a cada
ouvinte) precisar e modificar sua posição inicial. Esta modificação é
realizada, essencialmente, pela escuta, pela consideração e pela integração do
discurso do outro. Cada argumento, cada exemplo, o sentido de cada palavra
transformam-se, continuamente, pelo fato de serem confrontados aos dos outros
debatedores, pelo fato de
Os
gêneros escolares que cada um está, continuamente, situando-se em relação às
outras intervenções (François, 1993).
Esta
dinâmica faz do debate um formidável instrumento de aprofundamento dos
conhecimentos, de exploração de campos de opiniões controversas, de
desenvolvimento de novas ideias e de novos argumentos, de construção de novas
significações, de apreensão dos outros e de transformação de atitudes, de
valores e de normas. Em consequência, o trabalho escolar enfocará,
essencialmente, os modos de um posicionamento próprio a partir do desenvolvimento
de argumentos e de modalização de enunciados, a possibilidade de cada um
(através do funcionamento do debate) de intervir livremente quando quiser, a
capacidade de centralizar-se nos objetos em jogo e de engendrar novos temas que
daí decorram, o respeito à palavra dos outros e a integração destas ao próprio
discurso. É esta variação de debate que corresponde, igualmente, às finalidades
da escola e que permite o desenvolvimento de capacidades de linguagem,
particularmente argumentativas, essenciais.
A
entrevista radiofônica: um gênero a conhecer e fazer conhecer aos outros
A
entrevista é um gênero jornalístico de longa tradição que diz respeito a um
encontro entre um jornalista (entrevistador) e um especialista ou uma pessoa
que tem um interesse particular num dado domínio (entrevistado). Uma entrevista
consiste, então, a fazer falar esta pessoa expert a respeito de diversos
aspectos de um problema ou de uma questão, com o intuito de comunicar as
informações fornecidas a terceiros que representam, teoricamente pelo menos, a
demanda de informações. Contrariamente a uma conversa comum, a entrevista
apresenta um caráter estruturado e formal cujo objetivo é satisfazer as
expectativas do destinatário (André- Larochebouvy, 1984; Kerbrat-Orecchioni,
1990).
Muitos
autores consideram a entrevista uma prática de linguagem altamente padronizada,
que implica expectativas normativas específicas da parte dos interlocutores,
como num jogo de papéis: o entrevistador abre e fecha a entrevista, faz
perguntas, suscita a palavra do outro, incita a transmissão de informações,
introduz novos assuntos, orienta e reorienta a interação; o entrevistado, uma
vez que aceita a situação, é obrigado a responder e fornecer as informações
pedidas. Geralmente, os dois interlocutores ocupam papéis públicos
institucionalizados; a natureza da relação social e interpessoal condiciona
fortemente a relação que se instaura entre os dois. Em relação a outros gêneros
próximos, a entrevista mantém uma ligação fundamental com o universo da mídia.
Seu lugar social de produção é a imprensa escrita, o rádio ou a televisão. A exigência
de mediatização preside todas as atividades que se depreendem daí. Na
entrevista radiofônica, o papel dos participantes e as trocas aí implicadas
pressupõem sempre a presença de um terceiro, o público. Além disso, a cogestão
direta, em tempo real, das trocas, apesar da possibilidade de certas
manipulações durante a difusão, permanece uma de suas características
constitutivas.
A
partir da análise de entrevistas realizadas por alunos — a entrevista é um
gênero já bastante praticado no quadro escolar — e de um primeiro corpus de
entrevistas radiofônicas, uma síntese das dimensões ensináveis deste gênero foi
elaborada (Dolz, Erard e Moro, 1996). Evidenciamos que este gênero, sendo um
instrumento para adquirir e construir conhecimentos, pode, de maneira válida, constituir-se
num modelo simplificado, suscetível de facilitar a aprendizagem do papel do
mediador, da cogestão e da regulação da conversa formal.
Três
dimensões nos parecem essenciais deste ponto de vista:
1. O estudo do
papel do entrevistador, concebido como mediador numa situação de comunicação
entre um entrevistado, especialista num domínio particular, e um público
destinatário, geralmente iniciante, constitui um meio para desenvolver o
comportamento interativo verbal dos alunos. Nesse caso, o ensino organizado da
entrevista contribui para a construção de uma representação de um papel público
diferente da identidade privada dos interlocutores. Desta forma, os alunos
começam a tomar consciência do papel e das funções do entrevistador, do entrevistado
e do público numa entrevista radiofônica. Aprender a viver o papel de
entrevistador supõe a interiorização do papel dos outros dois atuantes.
Procura-se, assim, estabelecer instâncias internas de regulação que permitem ao
aluno conduzir, com discernimento, a tarefa de entrevistar.
2. O estudo da
organização interna da entrevista: as diferentes partes que compõem a estrutura
canônica global de uma entrevista (abertura, fase de questionamento ou núcleo e
fechamento) e a planificação da fase de questionamento permitem uma
aprendizagem de algumas características essenciais do gênero entrevista,
aliadas ao papel de entrevistador.
3. O trabalho
sobre a regulação local, no decurso da entrevista, dos turnos, a formulação de
questões e a utilização, da parte do entrevistador, de intervenções rápidas
permitem dar corpo, continuidade e retomada ao tema abordado pelo entrevistado
com novas questões ou comentários.
A
entrevista radiofônica, que apresenta uma relativa simplicidade do ponto de
vista contextual e da demarcação dos papéis, facilita o acesso a outros gêneros
e constitui, do nosso ponto de vista, um lugar que permite o distanciamento do
aluno. Movimentando- se no contexto de uma emissão radiofônica, enfatizando o
jogo fictício da entrevista, o aluno aprende a tratar e a interiorizar um papel
social para si próprio e o papel dos outros parceiros.
O
resumo, um gênero escolar reinterpretado, ou da necessidade de reconstruir a
lógica enunciativa de um texto
Num
certo número de trabalhos, Bernié (1994; 1996) tenta reinterpretar, por meio de
um modelo didático complexo, o que está em jogo no resumo escolar tradicional
que ele chama de “institucional”.
Trata-se
de ultrapassar a visão da tradição escolar a respeito de objetos que ela mesma
produziu — esta produção demonstra, ainda, a tese, cara à André Chervel, da
criatividade do sistema escolar, que produz uma verdadeira cultura —, a saber,
que o resumo seria a representação reduzida do texto a resumir, sendo o
problema da escrita reduzido a um simples ato de transcodificarão da
compreensão do texto, o que torna perfeita a expressão, múltiplas vezes
utilizada: “escrever é exprimir suas próprias ideias”. O exercício implica, ao
contrário, um trabalho complexo sobre os textos com vistas a um objetivo e um
destinatário — definido aqui pelo contrato escolar —, trabalho que deixa traços
linguísticos específicos no texto. Os conceitos de “esquematização” dos
conteúdos e de “ficcionalização” dos parâmetros contextuais designam este
trabalho e os traços deixados no texto.
A
injunção (imposição) semanticamente paradoxal subjacente ao resumo
institucional — dizer em poucas palavras, mas do mesmo ponto de vista
enunciativo, o que o autor do texto a resumir quis dizer — não pode ser
seguida, senão por uma atividade complexa de paráfrase através da qual o
“resumidor” revive, em seu resumo, a “dramatização discursiva” construída no
texto a resumir, a partir de uma compreensão das diferentes vozes enunciativas
que nele agem. Longe de se constituir numa atividade que poderia ser reduzida à
aplicação de algumas regras simples, formalizadas pelo cognitivismo, como sendo
as de condensação, de eliminação e de generalização, o exercício “resumo” deve
ser considerado um gênero que leva ao extremo a atitude metalinguística em face
de um texto em que é preciso reconstruir a lógica enunciativa, sendo a situação
escolar de comunicação, precisamente, aquela que solicita a demonstração da
capacidade desta atitude.
O
resumo escolar pode, assim, ser considerado uma variação de um gênero ou de um conjunto
de gêneros tão variado quanto a ficha de leitura, o resumo incitativo e a
resenha oral de um filme. Isso permite, por um lado, tratar e analisar o
resumo, da perspectiva do gênero ao qual pertence — a extensa gama dos resumos
— e descrever técnicas de escrita, no sentido mais amplo do termo, que são
próprias às variações deste gênero e, por outro lado, definir sua
especificidade em relação às outras variações.
Numerosas
pistas para o ensino dos gêneros são, assim, abertas através da variação destes
como princípio de progressão ao longo dos ciclos da escola e por meio do
trabalho sobre os conteúdos, que são as técnicas de escrita específicas. O
“resumo escolar” não é senão um ponto final numa longa série de resumos
contextualizados, que se torna, porém, pelo fato de levar ao extremo uma das
dimensões presentes em toda atividade de resumir, um eixo de
ensino/aprendizagem essencial para o trabalho de análise e de interpretação de
textos e, portanto, um instrumento interessante de aprendizagem.
Novas
questões...
A
hipótese aqui desenvolvida pode, a título de conclusão, ser formulada como
segue: quanto mais precisa a definição das dimensões ensináveis de um gênero,
mais ela facilitará a apropriação deste como instrumento e possibilitará o
desenvolvimento de capacidades de linguagem diversas que a ele estão
associadas. O objeto de trabalho sendo, pelo menos em parte, descrito e
explicitado, torna-se acessível a todos nas práticas de linguagem de
aprendizagem.
Os
problemas teóricos associados a esta hipótese são extremamente complexos e
levantam um conjunto de questões que podem ser, talvez, mais bem formuladas a
partir da reintrodução da noção de prática de linguagem, da forma como a
definimos no início: como funcionam as práticas de linguagem de aprendizagem
que têm por objeto gêneros que são um instrumento de outras práticas de
linguagem simuladas em classe? Que interpretações fazem os alunos, em função de
sua trajetória e de sua situação, dessas situações de aprendizagem que
implicam, necessariamente, este desdobramento?
Será
que agem em dois níveis ao mesmo tempo: naquele da prática de linguagem de
aprendizagem e, por meio do gênero trabalhado, naquele da prática de linguagem
visada? Quais são as interações entre os dois, em função das experiências dos
alunos? O que aprendem nessas situações? Capacidades de linguagem podem, assim,
ser construídas?
Será
que elas são, em seguida, transferidas das práticas de linguagem de
aprendizagem para fora e por quem? Será que transformamos, de maneira mais
generalizada, a relação dos alunos — e de quais? — com a linguagem? Esta
situação de dupla ruptura — com o cotidiano conhecido e com as práticas de
linguagem de referência — constitui, realmente, uma condição de aprendizagem
para todos, como nós a assumimos, implicitamente? Respostas a essas questões
somente podem nascer de uma análise das práticas de linguagem pertencentes ao
quadro escolar. Trata-se, sem dúvida, de um campo de pesquisa a ser
desenvolvido com toda urgência.
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