A Gra­má­ti­ca no Texto: Cidadezinha qual­quer de Carlos Drummond de Andrade





O con­cei­to de gra­­ti­ca no texto vigen­te nas esco­las hoje é dife­ren­te daqui­lo que a lin­guís­ti­ca tex­tual toma por obje­to. Essa expres­são geral­men­te é sinô­ni­ma de ensi­no con­tex­tua­li­za­do de gra­má­ti­ca, com­preen­den­do-se con­tex­to como um texto em que se veri­fi­cam deter­mi­na­dos usos da lín­gua.
Nesses casos, infe­liz­men­te, o texto rara­men­te é toma­do como uni­da­de de sen­ti­do e, mais rara­men­te ainda, como dis­cur­so. Relegado ao papel de supor­te, o texto quase sem­pre acaba se trans­for­man­do em mero pre­tex­to para a exem­pli­fi­ca­ção teó­ri­ca ou para exer­cí­cios de reco­nhe­ci­men­to ou clas­si­fi­ca­ção gra­ma­ti­cal.
Nesse tipo de prá­ti­ca meta­lin­guís­ti­ca, difi­cil­men­te se con­si­de­ram a lei­tu­ra e a inter­pre­ta­ção efe­ti­va do texto como ati­vi­da­des neces­sá­rias aos estu­dos gra­ma­ti­cais. Em ­outros ter­mos, na orga­ni­za­ção dos tra­ba­lhos da dis­ci­pli­na Língua Portuguesa, exis­te a hora da lei­tu­ra e da inter­pre­ta­ção tex­tual e exis­te a hora do estu­do da gra­má­ti­ca, que se faz con­tex­tua­li­za­do, em tex­tos, embo­ra estes não sejam toma­dos como uni­da­des de sen­ti­do ou como obje­tos de ensi­no.
Tomemos um exem­plo, este conhe­ci­do poema de Carlos Drummond de Andrade:



Cidadezinha qual­quer

Casas entre bana­nei­ras
mulhe­res entre laran­jei­ras
pomar amor can­tar.
Um homem vai deva­gar.
Um cachor­ro vai deva­gar.
Um burro vai deva­gar.
Devagar... as jane­las olham.
Eta vida besta, meu Deus.

(Reunião. 10. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. p. 17.)


A con­cep­ção que tem toma­do o texto como pre­tex­to para a abor­da­gem da lín­gua cer­ta­men­te se con­ten­ta­ria em apro­vei­tar o poema para fazer um levan­ta­men­to dos arti­gos empre­ga­dos (qua­tro ocor­rên­cias) e clas­si­fi­cá-los à luz da tra­di­ção gra­ma­ti­cal (três ocor­rên­cias do arti­go inde­fi­ni­do um e uma ocor­rên­cia do defi­ni­do as). A cha­ma­da con­tex­tua­li­za­ção, nesse caso, é com­preen­di­da ape­nas como o supor­te con­tex­tual em que os arti­gos foram empre­ga­dos, sem que se esta­be­le­ça qual­quer tipo de rela­ção entre as indi­ca­ções de sen­ti­do fei­tas pelos arti­gos e o sen­ti­do geral do texto.
Na ver­da­de, esse tipo de abor­da­gem gra­ma­ti­cal não passa de uma rou­pa­gem dife­ren­te de uma velha prá­ti­ca esco­lar, conhe­ci­da como gra­má­ti­ca da frase. Se antes se ana­li­sa­vam os ter­mos den­tro dos limi­tes da frase, hoje não é dife­ren­te quan­do a frase ainda é o limi­te dos ter­mos, uma vez que não se con­se­gue esta­be­le­cer nexos semân­ti­cos entre os ter­mos, a frase e o texto como um todo.
Provavelmente, quan­do Carlos Dru­m­mond de Andrade escre­veu “Cidadezinha qual­quer”, não esta­va preo­cu­pa­do com o empre­go de arti­gos e muito menos com a clas­si­fi­ca­ção des­tes; tal­vez nem tives­se per­ce­bi­do que fize­ra uso dessa clas­se gra­ma­ti­cal. Contudo, algo cer­ta­men­te lhe inte­res­sa­va muito: a cons­tru­ção do sen­ti­do ou dos sen­ti­dos do texto. E, para obter os sen­ti­dos pre­ten­di­dos, valeu-se dos recur­sos de que dis­põe a lín­gua, entre os quais o empre­go ou a ausên­cia de arti­gos.
O certo é que o poema não teria os sen­ti­dos que tem não fosse o empre­go dos arti­gos da forma como foram uti­li­za­dos. Se, por exem­plo, em lugar de “Um homem vai deva­gar”, tivés­se­mos “O homem vai deva­gar”, o sen­ti­do do poema seria com­ple­ta­men­te modi­fi­ca­do.
Aos estu­dos de lín­gua inte­res­sam jus­ta­men­te esses aspec­tos. Em vez de mero reco­nhe­ci­men­to de cate­go­rias ou de clas­si­fi­ca­ções, toma­do até então como um fim em si, impor­ta mais obser­var como cer­tas esco­lhas linguísticas, fei­tas den­tro do leque de coer­ções da lín­gua e do esti­lo pes­soal, par­ti­ci­pam da cons­tru­ção do sen­ti­do dos tex­tos.
Evidentemente, nem todo texto serve para qual­quer fim. A pre­sen­ça rei­te­ra­da ou mesmo a ausên­cia de deter­mi­na­dos recur­sos linguísticos devem ser os cri­té­rios bási­cos de esco­lha de tex­tos para tra­tar des­ses mes­mos recur­sos.
Os tex­tos podem ser lidos de mui­tas for­mas e por dife­ren­tes pris­mas. Pode-se aden­trar um texto por seus aspec­tos for­mais, tais como tipo de verso e rimas, pelo léxi­co, por sua cama­da fôni­ca, pela pon­tua­ção, pela sin­ta­xe, por recor­rên­cias de dife­ren­tes natu­re­zas, pelos para­le­lis­mos, pelas ima­gens, pelos moti­vos ou pelo tema, pela situa­ção de pro­du­ção, etc. Quando nos pro­po­mos a estu­dar gra­má­ti­ca no texto, supõe-se que pre­ten­de­mos ler o texto pela pers­pec­ti­va da lín­gua, isto é, dos recur­sos linguísticos uti­li­za­dos pelo autor para criar sen­ti­do naque­le texto e naque­la situa­ção de pro­du­ção.
Como exem­plo, pas­se­mos a ler “Ci­da­dezinha qual­quer” do ponto de vista do empre­go dos arti­gos.
Na pri­mei­ra estro­fe do poema não há ocor­rên­cia de arti­gos; na segun­da estro­fe, há três ocor­rên­cias do arti­go inde­fi­ni­do um; na últi­ma estro­fe, ape­nas a ocor­rên­cia do arti­go defi­ni­do as.
A ausên­cia de arti­gos na pri­mei­ra estro­fe do poema resul­ta numa gene­ra­li­za­ção dos subs­tan­ti­vos empre­ga­dos: casas, bana­nei­ras, mulhe­res, laran­jei­ras, pomar, amor e can­tar (subs­tan­ti­va­do). É como se, num movi­men­to rápi­do de uma câme­ra cine­ma­to­grá­fi­ca, se apreen­des­se uma visão glo­bal e dinâ­mi­ca de uma “cida­de­zi­nha qual­quer” do inte­rior, minei­ra ou de qual­quer outro Estado do país, onde ele­men­tos huma­nos se fun­dem à pai­sa­gem natu­ral. Nessa visão pano­râ­mi­ca, não há espa­ço para arti­gos e adje­ti­vos; é a coisa con­cre­ta que aflo­ra na pai­sa­gem.
A falta de pon­tua­ção, prin­ci­pal­men­te no últi­mo verso, acen­tua o dina­mis­mo da cena (e não do obje­to), como que com­pon­do um pai­nel cons­ti­tuí­do por flas­hes de uma peque­na e paca­ta cida­de de inte­rior. A pai­sa­gem natu­ra­li­za­da, soma­da ao aspec­to huma­no, que com ela se funde, con­fe­re ao poema algo de eter­no, de míti­co e está­ti­co.
Na segun­da estro­fe, os três ver­sos que a com­põem apre­sen­tam a mesma estru­tu­ra sin­tá­ti­ca e quase que a mesma esco­lha lexi­cal. Com varia­ções ape­nas nos subs­tan­ti­vos — homem, cachor­ro e burro —, nos três casos é sem­pre o inde­fi­ni­do um o deter­mi­nan­te des­ses subs­tan­ti­vos.
Vê-se, agora, um movi­men­to dife­ren­te da câme­ra, que sele­cio­na ­alguns dos ele­men­tos da pai­sa­gem e foca­li­za-os. Não há ainda indi­vi­dua­li­za­ção des­ses ele­men­tos, mas eles intro­du­zem movi­men­to na cena imó­vel. São ape­nas um homem, um cachor­ro e um burro quais­quer, como tan­tos ­outros que cir­cu­lam pelas cida­des inte­rio­ra­nas. Nada sabe­mos sobre eles, ­nenhum atri­bu­to (adje­ti­vo ou expres­são adje­ti­va) modi­fi­ca sua essên­cia. São seres ­comuns, inde­fi­ni­dos, anô­ni­mos. O que res­sal­ta em seus ges­tos é ape­nas o lento movi­men­to de ir. A estru­tu­ra para­le­lís­ti­ca des­ses ver­sos, seja na orga­ni­za­ção sin­tá­ti­ca, seja na esco­lha lexi­cal, rei­te­ra a ideia de len­ti­dão de movi­men­tos, de ações coti­dia­na­men­te repe­ti­das. Nada de novo ocor­re na pai­sa­gem.
A ter­cei­ra estro­fe ini­cia-se por um novo empre­go da pala­vra deva­gar, agora em posi­ção ini­cial do verso. Embora haja rei­te­ra­ção da ideia da moro­si­da­de das coi­sas, a inver­são do advér­bio, segui­da das reti­cên­cias, é sufi­cien­te para indi­car uma que­bra em rela­ção à sequên­cia ante­rior e pre­nun­ciar o des­fe­cho do poema.
Pode-se dizer que a câme­ra che­gou ao seu movi­men­to final. Como que se valen­do do recur­so zoom, o foco foi aos pou­cos se fechan­do, par­tin­do de uma visão pano­râ­mi­ca da pai­sa­gem para repou­sar agora no par­ti­cu­lar, nas jane­las, único subs­tan­ti­vo do poema acom­pa­nha­do de arti­go defi­ni­do.
Em con­tra­po­si­ção à impre­ci­são de homem, cachor­ro e burro (ele­men­tos diluí­dos na pai­sa­gem), con­fe­ri­da pelo empre­go do arti­go inde­fi­ni­do um, o empre­go do arti­go defi­ni­do as con­fe­re pre­ci­são e reco­nhe­ci­men­to às jane­las. Não são quais­quer jane­las; são aque­las conhe­ci­das jane­las das peque­nas cida­des do inte­rior, sobre as quais as pes­soas se debru­çam a fim de olhar a vida exte­rior, à pro­cu­ra de novi­da­des, de mexe­ri­cos, de acon­te­ci­men­tos que que­brem a roti­na. É como se, no espa­ço inde­fi­ni­do de uma cida­de­zi­nha qual­quer do inte­rior do país, hou­ves­se sem­pre algo conhe­ci­do e pró­xi­mo da expe­riên­cia de cada um de seus habi­tan­tes: as jane­las — único meio de con­ta­to com o mundo exte­rior.

          Convém lem­brar que o poema “Cidadezinha qual­quer” foi publi­ca­do pela pri­mei­ra vez na obra Alguma poe­sia, em 1930, quan­do ainda não se dis­pu­nha do rádio e da TV como meios de comu­ni­ca­ção. As peque­nas cida­des do inte­rior fica­vam pra­ti­ca­men­te iso­la­das das gran­des capi­tais.

A opção pelo arti­go defi­ni­do evi­den­te­men­te não é ­casual, mas uma con­di­ção, nesse con­tex­to, para con­tra­por o par­ti­cu­lar ao geral, o conhe­ci­do e pró­xi­mo ao difu­so e dis­tan­te. A per­so­ni­fi­ca­ção de jane­las (“as jane­las olham”) resu­me, no poema, aqui­lo que tal­vez seja a expe­riên­cia mais con­cre­ta de quem vive ou viveu nesse tipo de cida­de.
Olhando para os arti­gos ou para a falta de arti­gos do texto, evi­den­ciam-se tam­bém os movi­men­tos do olhar do sujei­to, que, indo do geral para o cada vez mais par­ti­cu­lar, se situa em algum ponto dessa cida­de­zi­nha qual­quer, tal­vez tam­bém de uma jane­la aber­ta. Contudo, não se trata de um olhar à pro­cu­ra de novi­da­des e, sim, de um olhar dis­tan­cia­do, embo­ra “inte­gra­do” ou, pelo menos, situa­do den­tro da pai­sa­gem. A per­cep­ção do mundo é media­da pela cons­ciên­cia crí­ti­ca que impe­de a ade­são pura e sim­ples aos hábi­tos da peque­na cida­de.
Esse olhar reser­va­do, em parte crí­ti­co, em parte irô­ni­co, lem­bra o olhar torto, gau­che, do “Poema de sete faces”6, ate­nua­do nesse caso pelo tom humo­rís­ti­co do verso final: “Eta vida besta, meu Deus!”.


  O “Poema de sete faces” tam­bém foi publi­ca­do em Alguma poe­sia (1930)

A obser­va­ção dos recur­sos lin­guís­ti­cos uti­li­za­dos no poema ainda pode levar a ­outros aspec­tos impor­tan­tes rela­cio­na­dos com o sen­ti­do geral do texto e com a situa­ção de pro­du­ção. Embora fuja aos inte­res­ses ime­dia­tos deste texto, vale ao menos citar ­alguns aspec­tos lin­guís­ti­cos do poema, tam­bém res­pon­sá­veis pela cons­tru­ção de sen­ti­do, como a sele­ção de um voca­bu­lá­rio sim­ples e marca de ora­li­da­de no últi­mo verso.
Se se leva em conta a situa­ção de pro­du­ção desse poema, nota­mos que essas “esco­lhas” tam­bém sig­ni­fi­cam: são mar­cas do com­pro­mis­so do poeta com o pro­je­to moder­nis­ta dos anos 1920, do qual Drummond fazia parte e era um de seus prin­ci­pais porta-vozes em Minas Gerais.
Com esse exem­plo, pro­cu­rou-se mos­trar o que pode­ria ser o cha­ma­do ensi­no de gra­má­ti­ca no texto na esco­la. Nessa pers­pec­ti­va de abor­da­gem da lín­gua e do texto, inte­res­sam menos as ques­tões que envol­vem pro­ble­mas con­cei­tuais (por exem­plo, as dife­ren­ças entre arti­gos e pro­no­mes) ou pro­ble­mas de ter­mi­no­lo­gia (arti­gos, deter­mi­nan­tes). Tomando as ter­mi­no­lo­gias como meio, e não como fim, ao pro­fes­sor e ao estu­dan­te inte­res­sam mais a obser­va­ção e a aná­li­se dos recur­sos que estão à dis­po­si­ção do usuá­rio da lín­gua, bem como das coer­ções que esses recur­sos impli­cam, como meio de apro­priá-los em suas prá­ti­cas dis­cur­si­vas, seja na con­di­ção de enun­cia­dor, seja na de enun­cia­tá­rio.
Os estu­dos de lín­gua na esco­la vivem, hoje, um longo perío­do de tran­si­ção. Talvez, neste momen­to, o mais impor­tan­te seja estar aber­to a ­outras dimen­sões da lín­gua, como o texto e o dis­cur­so, sem que, para isso, seja neces­sá­rio pôr abai­xo tudo o que a tra­di­ção gra­ma­ti­cal cons­truiu.
Pode-se lem­brar aqui a lição de Franchi, Negrão e Müller, ao suge­ri­rem for­mas de abor­da­gem semân­ti­ca na aná­li­se de estru­tu­ras sin­tá­ti­cas da lín­gua:

  

Não pre­ci­sa­mos, logo de iní­cio, aban­do­nar tudo o que apren­de­mos a res­pei­to da gra­má­ti­ca. No tra­ba­lho de ava­lia­ção da cha­ma­da “gra­má­ti­ca tra­di­cio­nal” ­alguns dados pare­ce­rão resul­tan­tes de uma exce­len­te intui­ção sobre o sis­te­ma da lín­gua e a estru­tu­ra sin­tá­ti­ca de mui­tas expres­sões. Outras terão de ser cor­ri­gi­das, esten­di­das ou ­melhor deli­mi­ta­das.


Ensino de Língua Portuguesa: entre a  tra­di­ção e a enun­cia­ção


          Texto apre­sen­ta­do por um dos auto­res desta cole­ção no VI Fórum de Estudos Linguísticos, na UERJ, em setem­bro de 2000, e publi­ca­do em Língua e trans­dis­ci­pli­na­ri­da­de: rumos, cone­xões, sen­ti­dos, orga­ni­za­do por Claudio Cezar Henriques e Maria Teresa Gonçalves Pereira. (São Paulo: Contexto, 2002.)

Faz apro­xi­ma­da­men­te três déca­das que a linguística che­gou às uni­ver­si­da­des bra­si­lei­ras e se inte­grou aos estu­dos de lin­gua­gem. Isso quer dizer que a abso­lu­ta maio­ria dos pro­fes­so­res de Língua Portuguesa que estão ati­vos na vida pro­fis­sio­nal teve um con­ta­to míni­mo que seja com essa área do conhe­ci­men­to cien­tí­fi­co.
Entretanto, se fizer­mos uma retros­pec­ti­va e exa­mi­nar­mos o que de con­cre­to mudou nas aulas de Língua Portuguesa das esco­las de todo o país duran­te esse perío­do, vere­mos que o saldo é muito peque­no. Sem alte­ra­ções pro­fun­das na sele­ção dos con­teú­dos ou no modo de ensi­nar lín­gua mater­na, tal­vez a prin­ci­pal mudan­ça se res­trin­ja à inclu­são de meia dúzia de novos con­cei­tos, oriun­dos da linguística e/ou da teo­ria da comu­ni­ca­ção, que pas­sa­ram a inte­grar os pro­gra­mas esco­la­res, prin­ci­pal­men­te os do ensi­no médio, como signo, sig­ni­fi­can­te, sig­ni­fi­ca­do, emis­sor, recep­tor, fun­ções da lin­gua­gem, polis­se­mia, etc.
Não é difí­cil com­preen­der as ­razões desse fenô­me­no. Ao con­cluir o curso de Letras, o recém-for­ma­do pro­fes­sor de Língua Portu­guesa ingres­sa no mer­ca­do de tra­ba­lho e passa a inte­grar uma estru­tu­ra de ensi­no — seja na rede públi­ca, seja na rede par­ti­cu­lar — for­te­men­te fin­ca­da na tra­di­ção, o que sig­ni­fi­ca, no tocan­te ao ensi­no de lín­gua, espe­ci­fi­ca­men­te, uma ade­são às prá­ti­cas cris­ta­li­za­das de ensi­no de gra­má­ti­ca.
Tanto as teo­rias já con­sa­gra­das da linguística quan­to as mais recen­tes pes­qui­sas no campo da lin­gua­gem com que o pro­fes­sor teve con­ta­to na uni­ver­si­da­de pouco con­tri­buem para a sua prá­ti­ca esco­lar, posto que ele se sente inti­mi­da­do ou até mesmo des­pre­pa­ra­do para, sozi­nho, afron­tar uma tra­di­ção mile­nar de ensi­no de lín­gua e supor­tar as pres­sões ­sociais de pais, dire­to­res de esco­las, con­cur­sos ves­ti­bu­la­res, etc.
De fato, a trans­po­si­ção de teo­rias cien­tí­fi­cas para o uni­ver­so esco­lar não pode ser mecâ­ni­ca nem dire­ta. Como consequência, dada a efe­me­ri­da­de e a luta das cor­ren­tes cien­tí­fi­cas e ideo­ló­gi­cas que atuam na Academia, a esco­la natu­ral­men­te opta pelo que está con­sa­gra­do pela tra­di­ção. E, no que se refe­re ao ensi­no de lín­gua, o con­sa­gra­do é a gra­má­ti­ca nor­ma­ti­va (em seus aspec­tos des­cri­ti­vos e pres­cri­ti­vos), cujas raí­zes remon­tam à Antiguidade greco-lati­na. Como mudar uma tra­di­ção mile­nar de ensi­no de lín­gua?
Ao longo das três últi­mas déca­das de estu­dos lin­guís­ti­cos, mui­tos foram os mode­los teó­ri­cos que se suce­de­ram, entre eles os da lin­guís­ti­ca estru­tu­ral, do gera­ti­vis­mo, da prag­má­ti­ca, da linguística tex­tual, da aná­li­se da con­ver­sa­ção e da aná­li­se do dis­cur­so.
Entre os lin­guis­tas mais des­ta­ca­dos, as posi­ções quan­to ao ensi­no de lín­gua na esco­la ­variam de um extre­mo a outro. Alguns pro­põem pura e sim­ples­men­te o fim do ensi­no de gra­má­ti­ca e sua subs­ti­tui­ção por estu­dos de lin­gua­gem — embo­ra nunca tenha fica­do clara o sufi­cien­te a dife­ren­ça entre esses dois obje­tos de ensi­no nem como seria um pro­gra­ma esco­lar de estu­dos de lin­gua­gem (sem gra­má­ti­ca).
Outros linguistas, sem des­pre­zar por com­ple­to a gra­má­ti­ca nor­ma­ti­va e sem pre­ten­der ofe­re­cer um mode­lo teó­ri­co aca­ba­do que subs­ti­tua o pri­mei­ro, ques­tio­nam o rigor dos con­cei­tos da gra­má­ti­ca nor­ma­ti­va, ou a forma como esta vem sendo ensi­na­da, e, toman­do como base um ou outro tópi­co gra­ma­ti­cal, for­mu­lam pro­pos­tas ou exem­plos de um ensi­no de por­tu­guês reno­va­do, geral­men­te com vis­tas na dimen­são semân­ti­ca e/ou dis­cur­si­va da lín­gua.



É nessa dire­ção de estu­dos linguísticos apli­ca­dos ao ensi­no de Língua Portuguesa que se situa a Gramática e inte­ra­ção — Uma pro­pos­ta para o ensi­no de gra­má­ti­ca no 1º e no 2º graus, de Luiz Carlos Travaglia, obra que repre­sen­ta um passo impor­tan­te na dis­cus­são sobre os rumos do ensi­no dessa dis­ci­pli­na. Partindo de uma dis­tin­ção entre gra­­ti­ca pres­cri­ti­va e gra­má­ti­ca des­cri­ti­va — as duas gra­má­ti­cas que cha­ma­mos gene­ri­ca­men­te de nor­ma­ti­vas —, o linguista não só admi­te o estu­do des­sas duas gra­má­ti­cas no âmbi­to esco­lar (com revi­são, evi­den­te­men­te, da ênfa­se dada a cada uma delas), mas tam­bém recla­ma da quase ausên­cia de ­outras duas, a gra­­ti­ca de uso e a gra­­ti­ca refle­xi­va, que não têm tido espa­ço na sala de aula.
Para Travaglia, um estu­do de lín­gua que ­inclua a gra­má­ti­ca des­cri­ti­va deve tomar as cate­go­rias gra­ma­ti­cais não como um fim em si, mas como meio, como supor­te bási­co para refle­xões metalinguísticas de maior alcan­ce. Há ­vários exem­plos em sua obra de como fazer isso.
Outro tra­ba­lho que ruma na mesma dire­ção é o ­ensaio “O uso de rela­ções semân­ti­cas na aná­li­se gra­ma­ti­cal”, de Carlos Franchi, Esmeralda V. Negrão e Ana L. Müller, que dis­cu­te as varia­ções sin­tá­ti­co-semân­ti­cas que envol­vem o pre­di­ca­ti­vo.
Em todas essas ini­cia­ti­vas, ape­sar das dife­ren­ças teó­ri­cas que mar­cam uma e outra cor­ren­te, o que se veri­fi­ca de comum entre elas é o inte­res­se em reno­var o ensi­no de Língua Portuguesa, modi­fi­can­do, diver­si­fi­can­do e amplian­do o ponto de vista sobre o obje­to, a lín­gua. Assim, não fal­tam demons­tra­ções bem-suce­di­das de como tra­ba­lhar ver­bos, adje­ti­vos ou pro­ces­sos de for­ma­ção de pala­vras pela pers­pec­ti­va semân­ti­ca, do texto ou do dis­cur­so.
Os pro­fes­so­res de por­tu­guês, em gran­de parte, ao terem con­ta­to com essas pro­pos­tas, reco­nhe­cem a per­ti­nên­cia delas e se sen­tem dis­pos­tos a alte­rar sua prá­ti­ca. O pro­ble­ma é que, se reu­ni­das, essas pro­pos­tas não che­gam a cons­ti­tuir um pro­gra­ma de ensi­no de Língua Portuguesa, nem uma sequência didá­ti­ca, até por­que esse não é o pro­pó­si­to dos pes­qui­sa­do­res que as for­mu­lam.
Como consequência, quan­do a esco­la conta com pro­fes­so­res atua­li­za­dos e dis­pos­tos à mudan­ça, o que se veri­fi­ca em sua prá­ti­ca peda­gó­gi­ca é um tra­ta­men­to dife­ren­cia­do de ­alguns tópi­cos gra­ma­ti­cais — que pas­sam então a ser tra­ta­dos pelo ponto de vista da semân­ti­ca, da prag­má­ti­ca, da linguística tex­tual ou da aná­li­se do dis­cur­so —, enquan­to os ­demais tópi­cos, pelo fato de ainda não terem sido obje­to de inves­ti­ga­ção, aca­bam sendo tra­ta­dos de modo tra­di­cio­nal.
Em meio a avan­ços e ­recuos, a pro­pos­ta toma­da como ban­dei­ra pela maio­ria das esco­las — e que ­ganhou a ade­são da maior parte dos pro­fes­so­res de Língua Portuguesa — é a de um tra­ba­lho con­tex­tua­li­za­do com a gra­má­ti­ca, conhe­ci­da como gra­­ti­ca no texto.

A Gra­má­ti­ca no Texto

A publi­ca­ção dos Parâmetros cur­ri­cu­la­res nacio­nais, em 1997, refor­çou uma ten­dên­cia que já se veri­fi­ca­va no ensi­no de Língua Portuguesa: a de um ensi­no con­tex­tua­li­za­do de gra­má­ti­ca, cen­tra­do no texto.
Contudo, enquan­to para os PCNs o texto devia ser toma­do como o obje­to bási­co de ensi­no e como uni­da­de de sen­ti­do, em mui­tas esco­las o que se nota­va, e ainda se nota hoje, é o uso do texto como mero pre­tex­to para o tra­di­cio­nal ensi­no da gra­má­ti­ca da frase. Ou seja, se antes fra­ses des­con­tex­tua­li­za­das ser­viam de obje­to para a teo­ria e para os exer­cí­cios de aná­li­se gra­ma­ti­cal, hoje, equi­vo­ca­da­men­te, apre­sen­tam-se tex­tos, dos quais são reti­ra­dos frag­men­tos para uma abor­da­gem linguística que não vai além do hori­zon­te da frase. O texto, como uni­da­de de sen­ti­do ou como dis­cur­so, é com­ple­ta­men­te esque­ci­do.
Perde-se, assim, a opor­tu­ni­da­de de fazer um tra­ba­lho de refle­xão gra­ma­ti­cal inte­gra­do à lei­tu­ra, que con­si­de­re o texto como uni­da­de de sen­ti­do. Em ­outras pala­vras, um tra­ba­lho de lei­tu­ra que exa­mi­ne de que modo a lín­gua é uti­li­za­da em todas as suas dimen­sões (foné­ti­ca, mor­fos­sin­tá­ti­ca, semân­ti­ca, esti­lís­ti­ca) para a cons­tru­ção do sen­ti­do ou dos sen­ti­dos do texto.

        Nossa posi­ção sobre gra­má­ti­ca no texto está desen­vol­vi­da em “Gramática: inte­ra­ção, texto e refle­xão”, publi­ca­do em Língua por­tu­gue­sa: uma visão em mosai­co, orga­ni­za­do por Neusa Barbosa Bastos (São Paulo: IP-PUC/Educ, 2002).

Se feito dessa forma, o tra­ba­lho com a lín­gua apro­xi­ma­ria os estu­dos de lin­gua­gem de tex­tos reais que cir­cu­lam social­men­te — lite­rá­rios e não lite­rá­rios — e ins­tru­men­ta­li­za­ria ­melhor o estu­dan­te para suas prá­ti­cas dis­cur­si­vas, seja na con­di­ção de enun­cia­dor, seja na de enun­cia­tá­rio. Esse tra­ba­lho, entre­tan­to, pode ser ainda mais amplo se for dada a ele uma dimen­são enun­cia­ti­va.

A pers­pec­ti­va enun­cia­ti­va

Durante mui­tos anos, a linguística desen­vol­veu seus estu­dos toman­do como refe­rên­cia a clás­si­ca dico­to­mia entre lín­gua e fala, esta­be­le­ci­da por Saussure. Vendo a fala como efê­me­ra e indi­vi­dual, Saussure colo­cou-a em segun­do plano para deter-se nos estu­dos da lín­gua, vista como um sis­te­ma está­vel de sig­nos e ­regras. Os estu­dos de enun­cia­dos, por­tan­to, inte­res­sa­vam mais como exem­plos dos meca­nis­mos exis­ten­tes na lín­gua, sejam os de fun­cio­na­men­to, sejam os de cons­tru­ção de sen­ti­do.
Estudos recen­tes no campo da lin­gua­gem, con­tu­do, demons­tram que a cons­tru­ção de sen­ti­do dos enun­cia­dos não se faz ape­nas a par­tir da sig­ni­fi­ca­ção iso­la­da de cada um de seus com­po­nen­tes. Os ele­men­tos extravertais da situa­ção de pro­du­ção, ou seja, da enun­cia­ção, tam­bém con­tam com um papel deci­si­vo na cons­tru­ção do sen­ti­do dos enun­cia­dos.
Por essa pers­pec­ti­va, pode-se dizer que cada enun­cia­do é uma rea­li­za­ção con­cre­ta, única e his­tó­ri­ca. Segundo Mikhail Bakhtin, “se per­der­mos de vista os ele­men­tos da situa­ção, esta­re­mos tão pouco aptos a com­preen­der a enun­cia­ção como se per­dês­se­mos suas pala­vras mais impor­tan­tes”.



Vejamos uma pos­si­bi­li­da­de de abor­da­gem enun­cia­ti­va a par­tir de um anún­cio de roupa infan­til.

Anúncio

“Se eu pudesse escolher, eu só usava LUlica Baby.”

“Fui no shopping com a Dindinha. Ela me levou em tudo que é loja.
Todo mundo falava: — que gracinha... que bonitinha...
Só que não tinha nada gostoso, tudo me apertava, me enforcava...”
“Se eu pudesse escolher, só usava Lulica Baby.”
Lulica Baby, a roupinha que o seu bebê vai gostar de vestir.
Para crianças de 0 a 4 anos.
Central de Atendimento ao Consumidor Tel.: (011) 266-3566

O anún­cio é opor­tu­no para ilus­trar como dois mode­los dife­ren­tes de aná­li­se da lín­gua — a pers­pec­ti­va nor­ma­ti­va, da gra­má­ti­ca tra­di­cio­nal, e a pers­pec­ti­va enun­cia­ti­va — abor­da­riam o mesmo obje­to.
Para a gra­má­ti­ca nor­ma­ti­va, que opera com ­noções de certo e erra­do, o anún­cio seria um bom obje­to de tra­ba­lho, pois for­ne­ce­ria situa­ções inte­res­san­tes para demons­trar erros gra­ma­ti­cais e pro­mo­ver sua cor­re­ção.
É o caso, por exem­plo, do enun­cia­do de des­ta­que no anún­cio (“Se eu pudes­se esco­lher, eu só usava Lulica Baby”), em que não se veri­fi­ca a cor­re­la­ção de tem­pos ver­bais mais indi­ca­da pela norma ­padrão, segun­do a qual o imper­fei­to do sub­jun­ti­vo (pudes­se) obri­ga­ria o empre­go do futuro do pre­té­ri­to do indi­ca­ti­vo: usa­ria, em lugar de usava.
Além disso, na parte infe­rior do anún­cio, em ­letras miú­das, há um texto que tam­bém pro­pi­cia­ria ­várias situa­ções inte­res­san­tes para a abor­da­gem nor­ma­ti­va, cujas obser­va­ções pas­sa­riam cer­ta­men­te pela regên­cia dos ver­bos ir e levar, pelo empre­go de ter em lugar de haver e pelas inú­me­ras mar­cas de ora­li­da­de, seja nas repe­ti­ções de tudo ou do tempo ver­bal (o imper­fei­to do indi­ca­ti­vo), seja na esco­lha lexi­cal (gos­to­so, em vez de agra­­vel, por exem­plo) ou no empre­go dos dimi­nu­ti­vos (gra­ci­nha, boni­ti­nha).
Se, entre­tan­to, tomar­mos esse texto pela pers­pec­ti­va enun­cia­ti­va, e sob um ponto de vista que admi­ta a exis­tên­cia e a per­ti­nên­cia de ­outras varie­da­des linguísticas, além da norma ­padrão, a aná­li­se leva­ria a ­outras dire­ções.
Primeiramente, é impor­tan­te obser­var que o texto não é cons­ti­tuí­do ape­nas por lin­gua­gem ver­bal. A ima­gem de um bebê sau­dá­vel, com menos de um ano e ves­ti­do com rou­pas da marca anun­cia­da, apoia e refor­ça a ideia do con­for­to e bem-estar recla­ma­dos pela crian­ça, que a parte ver­bal do texto pro­cu­ra trans­mi­tir.
O que vemos no enun­cia­do da parte de baixo do anún­cio é uma peque­na nar­ra­ti­va, no limi­te esta­be­le­ci­do pelas aspas, que conta a visi­ta de um bebê ao shop­ping, acom­pa­nha­do pela “Dindinha”, forma de tra­ta­men­to infor­mal e cari­nho­so de madri­nha. Em 1ª pes­soa, é o pró­prio bebê quem narra suas peri­pé­cias (“ela me levou em tudo que é loja”), abrin­do espa­ço, em dis­cur­so dire­to, para as vozes de ­outras pes­soas (“que gra­ci­nha... que boni­ti­nha...”), ao mesmo tempo que tece crí­ti­cas ao pas­seio (“só que não tinha nada gos­to­so”), pelo fato de não estar ade­qua­da­men­te ves­ti­do (“tudo me aper­ta­va, me enfor­ca­va”).
Fora das aspas, emer­ge outra voz, agora a de um adul­to, que expli­ci­ta­men­te ofe­re­ce o pro­du­to anun­cia­do ao lei­tor, refor­çan­do mais uma vez a ideia prin­ci­pal do anún­cio: o con­for­to das rou­pas anun­cia­das (“a rou­pi­nha que o seu bebê vai gos­tar de ves­tir”).
Do ponto de vista linguístico, o que cabe­ria per­gun­tar de ime­dia­to é: por que o anun­cian­te esco­lheu, para a fala do bebê, uma varie­da­de linguística infor­mal, com mar­cas de afe­ti­vi­da­de e ora­li­da­de, se o veí­cu­lo em que o anún­cio foi publi­ca­do (revis­ta Claudia, 1998) é escri­to e a varie­da­de linguística esco­lhi­da por esse veí­cu­lo é a ­padrão?
Nesse momen­to, con­vém exa­mi­nar ­outros aspec­tos da situa­ção de pro­du­ção: a quem se diri­ge o anún­cio? O públi­co dessa revis­ta, como todos sabem, é pre­do­mi­nan­te­men­te femi­ni­no, em gran­de parte for­ma­do por mulhe­res casa­das e com ­filhos ou mulhe­res com sobri­nhos, de nível socio­cul­tu­ral médio — por­tan­to, um públi­co que apre­sen­ta um per­fil ideal para com­prar o pro­du­to anun­cia­do.
O anun­cian­te, coe­ren­te­men­te, lança mão de estra­té­gias de per­sua­são, ver­bais e não ver­bais, com­pa­tí­veis com o per­fil de seus inter­lo­cu­to­res. Afinal, que ­mulher, tendo vivi­do ou não a expe­riên­cia da mater­ni­da­de, não se dei­xa­ria levar pela figu­ra dócil de um bebe­zi­nho e pela nar­ra­ti­va de peri­pé­cias feita por ele pró­prio?
É evi­den­te que um bebê com menos de um ano de vida ­jamais pode­ria pro­du­zir o texto deli­mi­ta­do pelas aspas, que supos­ta­men­te é seu, mesmo com todas as mar­cas de ora­li­da­de e infor­ma­li­da­de apre­sen­ta­das. No entan­to, o anun­cian­te esta­be­le­ce com o lei­tor um jogo dis­cur­si­vo em que tal fato passa a ser pos­sí­vel, e a esco­lha da varie­da­de linguística cum­pre o papel de atri­buir certo grau de veros­si­mi­lhan­ça à supos­ta fala do bebê.
Com algu­mas varia­ções, esse jogo dis­cur­si­vo é seme­lhan­te ao que ocor­re nas situa­ções em que um adul­to infan­ti­li­za sua lin­gua­gem, assu­min­do a voz da crian­ça que ainda não é dota­da de lin­gua­gem ver­bal e falan­do por ela com ­outras pes­soas, que por sua vez tam­bém podem res­pon­der, fazen­do uso ou não do mesmo recur­so (tro­can­do ­letras, supri­min­do síla­bas, etc.).
Assim, junto com a ima­gem do bebê, a varie­da­de linguística infor­mal cum­pre nesse texto a fun­ção de estra­­gia per­sua­si­va para ven­der o pro­du­to. Entrando no jogo dis­cur­si­vo, as lei­to­ras do anún­cio são toma­das ini­cial­men­te pela afe­ti­vi­da­de, o que pre­pa­ra e “amor­te­ce” o obje­ti­vo ver­da­dei­ro do anún­cio, a venda de uma roupa infan­til, expli­ci­ta­do pela voz do adul­to: “Lulica Baby, a rou­pi­nha que o seu bebê vai gos­tar de ves­tir. Para crian­ças de 0 a 4 anos”.
Levando em conta todos esses aspec­tos que fazem parte da enun­cia­ção, isto é, da situa­ção con­cre­ta em que o enun­cia­do foi pro­du­zi­do, pode­mos notar o quão estrei­ta seria uma abor­da­gem nor­ma­ti­va do anún­cio, que se con­ten­tas­se em ape­nas iden­ti­fi­car e cor­ri­gir os “erros” gra­ma­ti­cais.
E mais, fica muito claro nesse texto o quan­to é impró­prio o con­cei­to de “erro gra­ma­ti­cal” e como a abor­da­gem se enri­que­ce quan­do incluí­mos o con­cei­to de ade­qua­ção. No anún­cio, as varia­ções em rela­ção à moda­li­da­de escri­ta e for­mal não cons­ti­tuem erro; pelo con­trá­rio, elas são ade­qua­dís­si­mas à situa­ção, isto é, cum­prem ple­na­men­te os obje­ti­vos do enun­cia­dor de sen­si­bi­li­zar seu inter­lo­cu­tor para a com­pra de um pro­du­to de con­su­mo.
Em con­tra­par­ti­da, ina­de­qua­do seria orga­ni­zar o dis­cur­so infan­til de acor­do com a norma ­padrão, pois o texto per­de­ria em veros­si­mi­lhan­ça e, consequentemente, em força argu­men­ta­ti­va, frus­tran­do as inten­ções do anun­cian­te.
O texto ainda pode­ria ser­vir para ­alguns estu­dos espe­cí­fi­cos de lin­gua­gem, como a ques­tão do aspec­to ver­bal, a apre­cia­ção dis­cur­si­va, as varie­da­des linguísticas, o jogo de vozes na cons­ti­tui­ção do dis­cur­so, entre ­outros.
Se os estu­dos de lin­gua­gem a par­tir de tex­tos repre­sen­tam um avan­ço sig­ni­fi­ca­ti­vo em rela­ção à gra­má­ti­ca nor­ma­ti­va, a abor­da­gem enun­cia­ti­va repre­sen­ta um passo a mais, uma vez que, além de exa­mi­nar as esco­lhas linguísticas res­pon­sá­veis pela cons­tru­ção de sen­ti­do, exa­mi­na tam­bém os ele­men­tos exter­nos ao texto, ou seja, os ele­men­tos da situa­ção de pro­du­ção que, como vimos no caso do anún­cio, inte­ra­gem com os ele­men­tos inter­nos e par­ti­ci­pam da cons­tru­ção do sen­ti­do glo­bal do texto.
Hoje, vive­mos um momen­to de tran­si­ção no ensi­no de Língua Portuguesa na esco­la. Os PCNs, que expli­ci­ta­men­te defen­dem um enfo­que enun­cia­ti­vo do ensi­no de lín­gua, con­tri­buí­ram lar­ga­men­te para fomen­tar a dis­cus­são peda­gó­gi­ca e esti­mu­lar um espí­ri­to de reno­va­ção.
As dife­ren­tes cor­ren­tes da linguística e da aná­li­se do dis­cur­so podem pres­tar con­tri­bui­ções sig­ni­fi­ca­ti­vas ao ensi­no de lín­gua na esco­la, desde que haja aber­tu­ra e dis­po­si­ção de ambas as par­tes — uni­ver­si­da­de e esco­la — para efe­ti­var mudan­ças con­cre­tas.
Neste momen­to de tran­si­ção, não é neces­sá­rio aban­do­nar tudo o que pro­fes­so­res e alu­nos his­to­ri­ca­men­te vêm apren­den­do de gra­má­ti­ca14. As ter­mi­no­lo­gias tra­di­cio­nal­men­te apre­sen­ta­das pela gra­má­ti­ca nor­ma­ti­va, por exem­plo, podem até ser apro­vei­ta­das (evi­den­te­men­te, não sem crí­ti­cas ou revi­são), mas sem­pre como meio, e nunca como fim.

        Fazemos nos­sas as pala­vras de Franchi, Negrão e Müller, que afir­mam: “Não pre­ci­sa­mos, logo de iní­cio, aban­do­nar tudo o que apren­de­mos a res­pei­to da gra­má­ti­ca. No tra­ba­lho de ava­lia­ção da cha­ma­da ‘gra­má­ti­ca ­tradicional’ ­alguns dados pare­ce­rão resul­tan­tes de uma exce­len­te intui­ção sobre o sis­te­ma da lín­gua e a estru­tu­ra sin­tá­ti­ca de mui­tas expres­sões. Outras terão de ser cor­ri­gi­das, esten­di­das ou ­melhor deli­mi­ta­das”.

O ­melhor cami­nho para a mudan­ça do ensi­no de Língua Portuguesa na esco­la tal­vez seja o já esco­lhi­do por ­alguns estu­dio­sos da lin­gua­gem que, em lugar da crí­ti­ca radi­cal e dis­tan­cia­da da rea­li­da­de esco­lar, opta­ram por um diá­lo­go com pro­fes­so­res e alu­nos, par­tin­do de seus conhe­ci­men­tos linguísticos teó­ri­cos e empí­ri­cos para sal­tos maio­res.


Referências Biblio­grá­fi­cas


Bakhtin, Mikhail. Marxismo e filo­so­fia da lin­gua­gem. São Paulo: Hucitec, 1979.

Franchi, Carlos, Negrão, Esmeralda V., Müller, Ana L. O uso de rela­ções semân­ti­cas na aná­li­se gra­ma­ti­cal. Linha d’Água, nº 14.

Ilari, Rodolfo. A linguística e o ensi­no de lín­gua por­tu­gue­sa. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

__________. Introdução à semân­ti­ca. São Paulo: Contexto, 2001.

Neves, Maria Helena de Moura. Gramática na esco­la. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1991.
__________. Que gra­má­ti­ca estu­dar na esco­la?. São Paulo: Contexto, 2003.

Perini, Mário. Gramática des­cri­ti­va do por­tu­guês. 2. ed. São Paulo: Ática, 1996.

Travaglia, Luiz Carlos. Gramática e inte­ra­ção: uma pro­pos­ta para o ensi­no de gra­má­ti­ca no 1º e no 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996.

__________. Ensino plu­ral. São Paulo: Cortez, 2003.


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